Sororidade






O apartamento é mais bonito quando atravessado pela luz da manhã. É uma pena não estar lá nessa parte do dia para acompanhar o movimento do sol pelas paredes; pelo arsenal de objetos de decoração: porta-retratos, animais em miniatura, a coleção de globos de vidro que tocam músicas, realejos ianques.

Mas a impossibilidade da poética matinal é compensada pela solitude da tarde, com sua iluminação melancólica e aquele chorinho de bebê recém-nascido que chega do térreo ao terceiro andar, por volta das 15h30.

Se ela também não fosse mãe os grunhidos lhe passariam despercebidos? É uma questão que a mulher erma na sala se indaga. É tão artesanal o canto do bebê no carrinho lá embaixo. Poderia facilmente se misturar aos ruídos industrializados de carros ou da TV ligada nalguma série policial de países nórdicos (agora menos longe, na França).

Não tem jeito: nariz e ouvido que se domesticam com a maternidade são capazes de detectar odores em ínfimas doses; sons em sutis decibéis.

A ladainha do bebê atrai a moradora do apartamento à janela, de onde sempre vê aquela jovem mãe a empurrar o carrinho às 15h30. O infante é um bolinho de panos em movimento. A mãe, uma mulher sozinha como a que contempla, como todas as mães. A licença-maternidade pode ser uma ilha cercada de angústias e de cansaço por todos os lados, porém só as mães sabem disso e poucas confessam. 

A mulher passou há tempos desses tempos difíceis. Um bebê é um fardo, mas também um cheiro inconfundível de futuro colorido a impregnar todo o universo. Por isso, a mulher espicha o corpo para fora do peitoral e tenta sorver aquela lufada de esperança que emana do carrinho. As entranhas se revolvem nas lembranças e no alerta instintivamente acionado: há, ali, uma criança que precisa de cuidados.

Hoje ela também sabe que também há ali uma mãe que precisa de cuidados. Todo dia a genitora passa com ar cansado. Às vezes, resignado. Noutros, animadinha (comportamento típico do sub grupo mãe contemporânea). O bebê não dá trégua e está sempre a resmungar. Deve ser o indefectível momento-cólica. 

Tem tarde que a mãezinha se senta no resto de amurada que sobrou em frente ao prédio. Confere se o rebento está bem coberto, faz um afago nele. Tem dia que para o carrinho bem defronte da janela da mulher atenta e se curva por sobre a alça de metal até as mãos alcançarem o pacotinho de amor lá dentro. 

No último passeio, descobriu que o filhote se acalmava com o balançar dos cabelos dela em rabo-de-cavalo, e ficou ali a girar a própria cabeça de um lado para o outro como doida (doída): mamulengo desconjuntado. O bebê parou de chorar. A mãe se aliviou com a interrupção da cantilena, sem se importar com o ridículo. 

Todas a mães aprendem, ainda na gravidez ou durante os primeiros meses de sua nova e eterna vida, que o esdrúxulo será aquele leal e bem-humorado escudeiro. A dose regular e diária de insólito que lhe salvará de qualquer arrependimento por alçar o voo rasante da maternidade.

A mulher que observava a cena saiu da janela, se sentou na poltrona preferida e sorriu. Sororidade. 



Comentários

  1. Que visão dessa cena... Voltei às quadras, quando passeava com meu candango favorito, que nunca dormia, só à noite, depois que o pai chegava do trabalho. O passeio à tarde era um belo momento da exaustiva tarefa de maternar, fiquei com saudades...

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  2. Nossa, Lu!!!
    Que legal!
    Parabéns!
    Li alguns e adorei!

    Dorvalina

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  3. O que me espera... Um pouco de loucura, um muito de cansaço e alguma sororidade.

    Juliana Neto

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  4. Eu fico só imaginando essa cena e pensando : onde eu fui me enfiar!!!!Amor dividido com responsabilidade pesa o consciente, prima! E bate uma insegurança danada.

    Jôsy Militão

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  5. Maravilhosa como sempre hehehe

    Fátima Venceslau

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  6. Lu, que coisa linda vc escreveu. Quantos preciosos momentos vc descreveu. Parabéns!

    Ana Cecília Tavares

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  7. Obrigada, Lu! Lindo!

    Érika

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