Cupinzeiro


Um prédio residencial é um microcosmo da vida em sociedade. Há diversidade étnica, econômica, etária e social. Comportamentos convergentes e divergentes com as normas de convivência civilizada, enfim, a divina tragicomédia humana empilhada num cupinzeiro de concreto.

Existe a figura do faz-tudo, sempre sentado no primeiro degrau da escada, apostador contumaz na mega sena. Cartela e caneta nas mãos dia sim, dia não. Aguarda um futuro de sombra e água fresca há uns 40 anos.

No primeiro andar, mora uma família heterossexual: papai, mamãe, filhas pequenas e barulhentas, cachorrinhos idem.

No segundo andar, avós aposentados. Há também um pré-adolescente no apê do lado, com olhos grandes e efeminados. Engraçado, ali já viveu outro jovem gay dos mais cultos e simpáticos.

Revezando-se na portaria, uma zeladora avoada e sem senso (nunca abre a porta, principalmente se for preto e pobre); um senhor gordo que dorme quando deveria vigiar e outro porteiro perfeito, prudente, educado e sistemático.

No quarto andar, uma mulher caduca sozinha, relegada aos cuidados de uma empregada.

Os vizinhos do terceiro andar são bombados, adeptos do crossfit e de um cão de guarda nada amistoso.

Tem a galera que bate ponto na mini academia de ginástica no térreo. E tem as malucas que fazem abdominais no chão do pilotis.

O síndico é pai de um casal de filhos na universidade e mora com a esposa, professora do ensino especial recém-aposentada + uma sogra serelepe.

No andar mais alto, pai divorciado, advogado e ornitólogo, reveza a companhia dos três filhos com a ex-esposa.

Na outra prumada, há um viúvo que perdeu a mulher num acidente de carro absurdo. Ele, médico, tentou salvá-la, em vão. Faz tempo. O médico se casou novamente.

Um dos zeladores passa suas horas de trabalho ligado nas músicas gospel evangélicas. O outro, descola uma renda extra lavando os carros dos moradores.

Também no sexto andar, um apartamento sempre ocupado por inquilinos estrangeiros, famílias a serviço de embaixadas. Grupos familiares às vezes afáveis, às vezes ariscos.

Muitos idosos vivem neste cupinzeiro, gente transferida da velha capital pelo Banco do Brasil. Entretanto, aos poucos, as missas de sétimo dia dão lugar a novos proprietários.

Há os que pagam o condomínio e os que… Assim como tem aqueles casmurros que nunca dizem bom-dia. Os esnobes, os taciturnos, os preconceituosos, os engajados, os que estacionam BMW e os que guardam bicicletas e latas-velhas na garagem. Sem falar nos que só trazem problemas e naqueles que buscam as soluções.

Na última prumada da direita para a esquerda, está o apê de um recluso ministro aposentado do STF. Ele próprio à esquerda ideológica também.

Uma das condôminas desce para fumar todos os dias nas proximidades da guarita dos porteiros. Lembra a rabugenta Anésia, personagem dos quadrinhos. Coitados dos empregados terceirizados! Recebem passivamente a fumaça tóxica daquela chaminé.

Alguns apartamentos seguem originais e outros já estão contemporâneos: luzes de led, ilhas gastronômicas e demais remodelações burguesas.

Janelas do terceiro andar emanam som de clarineta e de piano em intermináveis estudos diários. Mais abaixo, há samba e cavaquinho nos fins de semana. A música, aliás, está entranhada nas paredes do prédio, pois ali compôs Renato Russo, ilustre habitante do apartamento 204.

Por sua vez, infiltrações e vazamentos fazem parte da rotina. Estrutura da década de 1970, sabe como é… E o jardim, ah, o jardim, nunca se apruma definitivamente. Parece que o canteiro dessa vez vinga; a nova espécie de grama peleja; a hortinha suspensa carece de espírito comunitário, assim como tudo o que é de todos no Brasil.

Entra gestão, sai gestão e o projeto de jardinagem não decola. Derrapa nas promessas não cumpridas. Qualquer semelhança com o país não é mera coincidência.



Linha da vida
do acaso
do trem perdido
abandonado.
Linha de ônibus
periférica
lotada madrugada.
Linha de defesa
imunológica
mapeada.
Linha de pesca
estrelas do mar
Linha de pipa
papagaios azuis
Agulha e linha
suturam a pele
costuram o vestido
de linho
desalinhado.
Linha de passe
liberdade.
Linha de transmissão
pensamento
servidão.
Linha do Equador
imaginária muralha
mundo partido.


Comentários

  1. Massa, Lu! KKK!

    Fátima Venceslau

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  2. Ótimo! É desse jeitinho. Tem de tudo!
    Por esse motivo, reluto em sair da casa para um apartamento. Aqui convivo com minhas manias.

    Tania Benn

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  3. "a hortinha suspensa carece de espírito comunitário, assim como tudo o que é de todos no Brasil."
    Pois.

    Alessandra Serra

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  4. Adorei essa crônica, acho muito interessante a vida nesses cupinzeiros🤭 Adorei o nome. Viajei ❤😘

    Renata Assumpção

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  5. Pois é amiga, que descrição!!! só reforça a minha decisão de não mais morar em prédios…nenhum sapateador, treinando em cima da sua cabeça?😂🙏🥰
    Cynthia

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  6. Muitíssimo lindo este poema!

    Alessandra Serra

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  7. Luis Fernando Veríssimo , em “O Condomínio”, faz uma arguta análise da temática “Ditadora no Brasil” a par do inusitado encontro e convívio - no mesmo locus ( Condomínio) - de um opressor e de seu oprimido…muito legal o conto.
    ….Gostei muito da sua analogia: do cotidiano dos moradores de um “cupinzeiro de concreto” (prédio residencial) e o contexto político-social e econômico que vivenciamos hoje em “terras brasilis” ….👏👏👏

    Adriano Schulc

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  8. Seu prédio é engraçado, né?
    Kkkk

    Marisa Assunção

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  9. Isso é pressão pra obra da casa andar ? 😉🌷

    Clarice Veras

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  10. Gostei muito, a sensibilidade do teu filho para música vem do teu olhar sensível para o todo.
    Gostei muito do cupinzeiro. 👏👏👏👏

    Cristina

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