No templo do efêmero


“Muita gente acha que os museus são apenas um depósito qualquer com vitrines. Até pouco tempo atrás eu também pensava assim. Mas pra você um museu é uma coisa complexa, imensurável. Dentro dos museus existe todo um universo. Apesar disso, a maioria das pessoas já fica satisfeita dando uma voltinha perto da porta. Só pouca gente consegue realmente ir até o fundo desse universo.”

(Trecho de “O Museu do Silêncio”, de Yoko Ogawa)



Gostoso acreditar que o universo conspira ao nosso favor. Todos os caminhos levam a Roma e se você está mentalizando e focando em algo, esse algo naturalmente lhe encontrará no meio do percurso para um abraço caloroso.

Alguns chamam de sincronicidade, outros têm certeza de que os aplicativos e as redes sociais nos espionam e oferecem aquilo que estamos a procurar.

Certamente há veracidade nos dois contextos. E há também a possibilidade de que você esteja mais atenta para se deparar com sinais do que já está em seu trajeto mental ou físico. Conexões telúricas. N alternativas, todas as anteriores.

Estava na manicure e ela, mulher de muita personalidade, vivida, sofrida e observadora. Ciente de sua dignidade e de sua excelência no ofício que lhe dá sustento e identidade. Quieta, mas de ouvidos nada moucos, sintonizava em tudo ao redor, ainda que o intenso ruído de secadores de cabelo e da playlist musical tornasse confusa a compreensão doe zum-zum-zum típico dos salões de beleza, caldo de consultório sentimental, de terapia e de fofoca renovadas no entra e sai de clientes.

Estas duas unhas de fibra saíram por causa da trilha que fiz no feriado de Tiradentes lá em Goiás Velho, expliquei. Tive de me agarrar em galhos, pedras, era difícil, uma trilha quase selvagem.

Ah, eu fui uma vez pra Goiás, ela retrucou baixinho. É uma pessoa discreta, serena. Parece gostar mais de ouvir do que de falar, no que combinamos. O primo do meu ex-marido morreu e fomos ao enterro do rapaz. Gente, marcaram o enterro pra três da tarde!

Nossa, três da tarde em Goiás Velho é uma provação!, concordei.

Meu Deus, que calor era aquele, a gente com roupa de linho, manga comprida, calças. O enterro nunca acabava, o sapato derretia. O calor que subia daquelas pedras parecia que vinha de um vulcão. A cidade fica numa grota, né?

Hahaha, sem dúvida.

Depois a gente ficou vendo as outras sepulturas, meu Deus, gente velha demais, de 300 anos, enterrada ali.

Ela seguia contando de sua experiência num tom baixo e polido, blasé até. Eu colocaria mil exclamações após cada frase, porém não ela, avó pé no chão, o chão que lhe causou bolhas dentro dos sapatos. A manicure não tem nada de espalhafato. Contudo, é irônica: meu Deus, o que faz um pai colocar o nome da filha de Remédios?, murmura quando outra moça se anuncia. Sorrio e penso que ela também se diverte com os nomes assim como eu.

Eu fui num museu lá em Goiás, continua. Era a primeira vez que eu entrava num museu, né? Daí eu vi uma jarra linda, meu Deus, daquelas grandonas de cobre, maravilhosa, e aí eu coloquei a mão na jarra e a moça me deu uma bronca, que eu não podia tocar em nada, que era proibido. Fiquei pensando pra quê tudo aquilo lá, aquelas coisas velhas todas juntas se a gente não pode nem pegar. Museu, né?

Mas já pensou se não tivesse um lugar para guardar e mostrar todas essas coisas velhas? Você não teria a oportunidade de ver a tal jarra linda que lhe encantou. Os museus guardam nosso passado, caso contrário, não sobraria nada para a gente ver no presente, não acha?

Ela levantou o olhar das minhas unhas e me fitou por um átimo, pensativa, e logo voltou aos seus afazeres.

É, qualquer dia eu preciso voltar em Goiás, com mais calma. Parece que tem muita coisa pra ver lá naquele lugar velho.

Fim do papo.

Pois bem, cadê a sincronicidade decantada na abertura deste texto? Nada além do fato de estar lendo, exatamente agora, um romance que homenageia esses espaços sublimes de memória e de espanto. Quem ousaria apostar numa conversa sobre a essência dos museus justo no templo do efêmero? Eu, jamais.

Comentários

  1. Uauuu muito gostoso de ler esse papo cabeça, “unhas”…num salão/museu😂😂😂ótimo 👏👏👏😘
    Cynthia

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  2. Adoros esses textos do cotidiano 😉 Cada dia é especial ao seu olhar 😍😍

    Karla Liparizzi

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  3. Minha querida amiga amo todos todos os seus textos são maravilhosos!!!

    Mabel

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