Horror no paraíso




Todas as manhãs ela faz a varredura entre as ondas e a areia. Ela não está à procura de tesouros valiosos regurgitados pelo mar. Seu detector não é de metais, a cobiça é outra: nácar, carbonatos de cálcio espiralados, estrelas do mar calcificadas, búzios a sorrir sem dentes. "Mas é mesmo bela e banguela a Guanabara"...

Serão as conchas todas iguais em variedade de formas e de tamanhos ou cada memória da vida do antigo habitante deixa uma marca indelével?

Gostava de se imaginar pessoa frágil, molusco abrigado lá no fundinho da carapaça tenaz. Ou de fato era de natureza mole, inconsistente?

Ideias lhe passam pela cabeça e são levadas pelo vento incessante do litoral. O marido havia explicado o porquê dessa perene força eólica, mas as explanações exatas às vezes lhe escapam. 

Ela seguia o trajeto, ritual de ajustar a visão míope, virando o rosto da esquerda para direita, ao redor dos próprios passos. Ânsia em capturar os exemplares exóticos.

Há dias com sorte e há dias iguais. Iemanjá é caprichosa e presenteia quando quer. Também é assim a existência, não? Surpreende e horroriza sem floreios.

Ela tentava afugentar o pensamento intruso e dolorido. Olhava na linha do horizonte e se concentrava na calma daquela paisagem. Um quarteto de meninos e boias efusivos a distraiu por um momento da atividade matinal de análise e de coleta, porém o grito infantil excruciante: Para! Para! insistia em invadir a leveza de paraíso que criara para si no fim do ano. 

Sua tola, "quem lê tanta notícia?" Todavia, não abandonava o hábito de se inteirar das coisas imundas e raras do mundo. Em 2020, mais imundas do que raras.

Ainda que a missão espacial chinesa tenha afanado dois quilos de Lua ao retornar para a Terra, nada fazia cessar a certeza de ser mulher num país vil.

Era capaz de garantir que não existem feminicídios no Éden. O problema era encontrar a passagem para lá.


Comentários

  1. Gostei muito!

    Maria Félix Fontelle

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  2. Como sempre muito bom, amiga!

    Cecília Soares

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  3. Intrigante e profundo, faz a gente mergulhar nesse mar de controvérsias e belezas ao mesmo tempo. Beijos!

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  4. "Há dias com sorte e há dias iguais. Iemanjá é caprichosa e presenteia quando quer. Também é assim a existência, não? Surpreende e horroriza sem floreios".
    "Não há feminicídios no Éden. O problema era encontrar passagem para lá".
    Muito bom seu texto, autora preciosa!
    Me fez lembrar de Perdoando Deus, da Clarice. Sempre haverá ratos a cruzar nossos caminhos...

    Karla Melo

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  5. Belo texto!

    Rodrigo Holanda

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