Asco inspirador




Todo bom nome da literatura escreveu ao menos uma ode à repugnância das baratas. Ainda bem que já publiquei a minha, pensou satisfeita, e soltou uma gargalhada solitária e autoindulgente, balançando a cabeça em negação com a piada besta que acabara de lhe ocorrer.

O fato é: Kafka, Lispector e Cortázar fizeram milhões de leitores revirar as entranhas com suas protagonistas cascudas. Certamente haverá outros escritores ainda não lidos cujas vaidades aceitaram o desafio: narrar a inquietante intimidade anatômica e comportamental do inseto mais asqueroso da cadeia alimentar dos, dos, dos… gatos?

Não, não, não queria sequer se lembrar disso. Ainda estava assombrada pelo conto de Julio, a mareá-la como se estivesse numa roda gigante ou sofresse de labirintite. 

A história ia e voltava, ia e voltava de seus pensamentos numa mescla de pavor com reverência. Puta que pariu, esse cara escreve. Levara quase 50 anos para descobrir, pois resolveu, sem recomendação de amigos, de algum crítico literário respeitável ou da lista de best-sellers do New York Times, experimentar obras de autores jamais digeridos. 

Não, não, por que os verbos alimentares insistem nessa aparição enjoada? Culpa sua, Julio. Preferia o prenome bonito ao sobrenome difícil de pronunciar que lhe conferiu a fama entre os intelectuais.

Terminou Bestiario (no original) bestializada com a mórbida e competente escrita do argentino. Qual seria a razão para a América Latina haver criado o realismo fantástico? Pedro Páramo abriu as janelas e a ventania de personagens surreais adentrou o imaginário dos autores. Desconfiava da mística dos incas, maias, astecas. As bizarrices de uma tradição oral indígena fecunda e colorida que criou raízes incapazes de sucumbir à total dizimação.

Agora, alterna a leitura do afiado "O Buda no Sótão", escrito pela americana Julie Otsuka. Uau, não é que ela estava na companhia de uma dupla de jotas com estilos distintos? Coincidência feliz.

Ao contrário do xará, Otsuka adota pena dura, enxuta, a fim de narrar a saga de jovens nipônicas levadas ao sonho de uma vida na América, casadas por fotografias e correspondências fake news de japoneses emigrados na Califórnia, antes da segunda guerra mundial - com o livrinho de contos da neozelandesa Katherine Mansfield, garimpado por dez reais numa inesperada "Feira Popular de Livros" acomodada na praça central da cidade baiana de Prado.

Estupendo "A Mosca e outras histórias". Me ganhou nas primeiras páginas. Superados o asco, a repulsa e o embrulho no estômago, a atração por bichos escrotos dão mesmo asas a relatos magistrais.


Comentários

  1. In PAPILLON, o prisioneiro na ilha da Guiana, em uma solitária, ficava de tocaia na cela à espera das baratas que passavam por ali para devora-las.....a proteína baratal o salvou da morte, conseguindo fugir posteriormente, passando pelo Rio de Janeiro e la deixando um filho, segundo a lenda, que teria sido Lucio Flavio, o passageiro da agonia. A conferir. obs.. neste caso, minha excelente memória inútil me deixou na mão, pois não lembro o nome do autor do livro, (acho que é o próprio Papillon), bem como não lembro o nome do protagonista da história.

    Severino Barbosa

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  2. As baratas são os piores bichos escrotos, 🤣🤣🤣

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