Mimeógrafos


“Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.”
(Carlos Drummond de Andrade)



Quando chego ao trabalho ela já está lá. Trocamos o automático bom-dia diariamente. Ela está sempre de cabelo preso, severo rabo de cavalo. Quase uma Marina Silva: entre a humildade e a altivez. Magra também é. Agora me ocorre que as existências exíguas demandam um corpo frágil. É mais difícil ser invisível aos gordos. 

Queria entender dessas sombras. O que se passa na cabeça de quem faz todo dia tudo sempre igual. Como é que é permanecer horas em silêncio todas as manhãs, cumprindo a cota individual de fardo e obrigações em total anonimato. A impressão é que ela nem respira: vivência em suspenso ou em suspense. 

Essas personagens de “O Turista Acidental” são fascinantes para mim. Atração mórbida pela dissolução, giz que se apaga, névoas. Admiro o viver autossuficiente de quem opta pelo papel-carbono, pela cópia mimeografada exalando éter. Elementos sésseis, isolados e desconhecíveis. As sombras não emitem rebeliões, opiniões, chateações. Emanam a graça bovina da passividade e até sorriem, mas como se o sorrir também fizesse parte da vontade de passar despercebidas. 

Enigma. Cubo mágico. Serão serenas? Serão plenas? Queria experimentar esse ground zero ao menos uma vez, a fim de responder se a transparência é de fato mais leve do que a resplandecência. Do lado de cá, ela me parece muito bem resolvida. Aceita de bom grado as vicissitudes. Eu, quase gorda, quebro cristais quase todos os dias. 

Desde muito pequena nutro temor e admiração por essas almas encobertas. Passei a infância ao lado de uma pessoa que era uma Joia e se chamava Jória. Nunca houve uma mulher como Jória! Pelo menos nunca mais igual nome de personalidade a batizar alguém tão sutil. Espectro que resvalava por nós e deixou sua marca de descrição indelével e indolor. 




Ela alugava um dos quartinhos que mamãe fizera diminuindo o tamanho da sala. Aumentar a renda da viúva com sete filhos era imperativo. Todo dia, saía para trabalhar cedo e voltava já noitinha. Entrar naquele cubículo, o pequeno santuário da calada inquilina, era uma das minhas maiores ambições. Entretanto, só conheci a cama casta e os objetos espartanos ali escondidos muitos anos depois. 

Jória viveu com a nossa barulhenta família por muitos anos. Creio que aprendeu a nos amar e nós a ela. De vez em quando me levava para um sábado na casa da irmã, casada e mãe. Noutras folgas, me conduzia pelas mãos ao Só Frango da W3, onde comprávamos um galeto assado para saborear o domingo besta da Brasília modorrenta dos anos 1970. 

A única transgressão visível de Jória era fumar. Ela entrava e saia de casa; tomava banho e enrolava uma toalha-turbante para secar os cabelos rigorosamente da mesma forma, de segunda a segunda. Acredito que comia, mas não consigo me lembrar daquela moça (ou senhora? Nem a idade dela se divisava) permitindo-se o prazer da gula. Quais teriam sido as dores e as delícias de Jória? O que guardava no coração? Tinha coração? 

Aquela mulher esmaecida, bege, deixou em minha cabeça tantas interrogações... Ela se foi e não sei se ainda vive sua vida completamente previsível. Gostaria de reencontrá-la agora que já sou fatalmente esbaforida. Será que pressentia que eu jamais seria como ela? Porque, para mim, naquela infância rodeada de adultos malucos, tudo o que eu mais desejava ter quando crescesse era a indecifrável paz de Jória. 

Comentários

  1. Acho que não tinha lido esse. Será? Não ia me esquecer de Jória. Será?

    Valdeir Jr.

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  2. Esse eu não tinha lido. Por onde anda Jória? Também queria saber.

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  3. ��
    Legal demais essa sua homenagem à Jória!!
    Apesar de extremamente discreta, Jória jamais passaria despercebida!
    Pessoa densa, serena.
    Que se importava com os outros. Os outros dessa família que ela "adotou" eqto conosco conviveu...
    Nutríamos, uma pela outra, uma admiração mútua, um carinho e um amor incondicional...
    Ela torcia por mim, ela vibrou qdo o Jô apareceu em minha vida e ela mimava o Rodrigo.
    Primeiro filho, primeiro neto...
    Amada Jória!!
    Tbm gostaria de revê-la, certa que estou de ser pessoa indelével em minha memória e coração...

    Marilena Holanda

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  4. Muito gostoso de ler suas lembranças 🙏🥰

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