Inexorável





O tempo singra e sangra perene, implacável. Torniquetes lhe fazem cócegas. Injeções de botox lhe paralisam em pequenas doses, mas as rachaduras do rosto e da alma seguem o caminho inexorável de suas próprias trajetórias. Caramba, quanta profundidade só porque o caçula perdeu seu primeiro dente de leite. Na marra, como se ele – o dente - também pretendesse frear o rumo dos acontecimentos que aí estão à nossa revelia. 

Com bravura, suportou a imensa agulha da anestesia e a chateação da insensibilidade do lábio inferior. E lá estava o dentinho pequeno e alvo nas mãos dele e depois debaixo do travesseiro à espera da fada dos dentes importada e pouco crível. Resultado: os pais se esqueceram de deixar a moeda e o filho cobrou na manhã seguinte: “pode me dar agora, porque eu sei que vocês é que são a fada dos dentes”. 

É tristinho quando eles vão perdendo a inocência diante dos nossos olhos... Quando a gente é criança nem repara quando deixar de ser. Mas se temos filhos, eles são o espelho do que a biologia e a sociedade fazem conosco: amadurecemos, ficamos velhacos e depois velhos. E os pais tentam retardar esse fluir da correnteza não porque têm saudades da dependência que tanto extenua, mas sim desse pueril, límpido e agudo olhar sobre a vida que só os pequenos têm. 

Pelo menos para mim é assim que funciona o paradoxo: fico feliz por meus filhos estarem cada dia mais independentes, porém dói no peito vê-los menos inocentes do que ontem. O mais velho, inclusive, já sofre de nostalgias: “por que eu não gosto do parquinho como eu gostava antes? Queria tanto gostar de brincar com esses brinquedos de novo...” 

Mas o correr da existência não perdoa ninguém. Só quem morre criança não vira jovem. E ninguém põe sementes no mundo para não vê-las frutificar na potência máxima. Então eles vão crescer sem ligar para as minhas angústias e sem que nem eles percebam, assim como nós não nos demos conta e já estamos aqui, chegando na tal metade da vida. 

Não adianta chamar de bebê, colocar no colo ainda que se dê um jeito na coluna ou furtar um cheirinho na nuca em sonho profundo. Eles já não são tão meus. Eles agora pertencem ao reino da velocidade da luz. Não sei se peço para o tempo dar um tempo no meu envelhecimento ou no deles. Em ambos seria pedir muito? 


Comentários

  1. Oi, Lu, tudo bem?

    Filhos crescendo, né... Helena é quem me diz: mãe, quando a gente começa a virar pré-adolescente? Tem vezes que não quero mais saber de brincar... ó dúvida! ó mundo cruel!

    Beijos, beijos da
    Carmem Cecília

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  2. Essa é a grande magia da vida...
    os paradoxos,é com eles que crescemos,evoluimos.Saudades desse tempo,revivido agora pelo seu lindo texto...bj
    Namastê!
    Cynthia

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