Quisera





O carro para e a menina negra de uniforme atravessa a faixa. Traz na cabeça uma penca de trancinhas bem feitas presas em rabo de cavalo. A escola é pública, mas seus sonhos se escondem naqueles passos firmes, no olhar encarando o outro lado: o futuro. 

A motorista do carro fica orgulhosa de si mesma, de um país fictício no qual as pessoas param na faixa para os pedestres passarem. Um país onde aquela menina negra seria igual à menina branca e mais além: numa nação na qual ela estaria segura para ir a pé para a escola, que é pública e boa; pública e digna. 

Nos segundos que atravessam a mente da motorista e os pés da estudante, uma vontade de acreditar que o Brasil é de fato especial, ainda que compartilhe dos sentimentos da escritora Martha Medeiros em entrevista assistida um pouco antes de pegar no volante: “Especial, por quê? Eu quero é viver em um lugar no qual não precise colocar grade na frente do prédio; que eu possa passear sozinha às nove da noite pelas ruas da cidade. Apesar de gostar do Brasil, me sinto mais estrangeira aqui do que em Londres”. 

A motorista segue o trajeto rotineiro. Abre o jornal assim que deixa o trânsito e lê que somos o 6º país do mundo em número de homicídios de crianças e adolescentes até os 19 anos de idade, de acordo com a mais completa pesquisa sobre o tema já feita pelo Unicef. 

Imediatamente ela recorda da menina negra de casaco azul que atravessava a faixa. Teme pela inocência dela (1 em cada 10 meninas do planeta já sofreu algum tipo de ato sexual forçado, segundo a mesma pesquisa). São tantos lobos maus no caminho deserto daquela menina que vai para a escola de ônibus e desce a pé pela calçada até chegar à escola. Inimigos íntimos ou desconhecidos. 

A motorista, leitora, mãe, cidadã reconhece que o orgulho experimentado naquele átimo de tempo no qual a ação dela cruzou com o direito à felicidade da menina negra de tranças, não passou de quisera, quimera.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos