Refugos




Joana falou comigo hoje. Tirou a máscara e pediu - na elegância costumeira - qualquer quantia para completar o valor de um remédio.

Ver Joana de longe, passando com suas sacolas e cabelos brancos, é uma alegria que sói acontecer na entrequadra 406 e 407 sul. Ela está habituada a transitar por ali. Poucas vezes pede algo.

Nessa tarde, me abordou quando cruzamos nossos olhares na calçada. Eu indo, ela vindo. Honrada fiquei ao ouvir aquele fio de voz altivo. Sua presença espectral não causa pena ou angústia. Ela parece ser bem resolvida na vida de andarilha que lhe coube.

O mesmo não se constata sobre a crescente horda de zumbis a vagar pelas ruas, a dormir sob as marquises, a urinar atrás das árvores mais bojudas. Ou do guri de quatro anos que urrava acomodado num carrinho de supermercado. O descalabro contido no paradoxo: dois meninos-mercadorias com fome à porta da farmácia.

Era para ser um pastel com suco ao cair da tarde. Levantei da mesa e fui ter com aquela jovem mãe. Ela explicou que o passarinho tinha dor de dente. Quatro anos e dentes de leite cariados. Nas mãozinhas segurava, não o copo de leite, mas uma garrafa de refrigerante.

Entrei na drogaria e comprei um destes analgésicos que nossos filhos tomaram ao longo de suas infâncias bem nutridas. Dê quatro gotas como a idade dele. Daqui a quatro horas dê novamente, para ele dormir mais tranquilo, tá bom?

Não, não estava bom. Excruciante não ser dentista, não poder levar aquele garoto a um especialista. O casal bonito e miserável agradeceu. Rumariam para onde? Teriam abrigo? Bolsa-família? O pai empurrou o carrinho de bebês-mercadorias. A jovem mãe seguiu seus homens.

Me senti drenada pelo sórdido da cena, mais uma dentre as centenas que a gente presencia, alternando impotência e anestesia.

Dois dias antes, comprei panos de chão de um rapaz. Com os olhos marejados, ele revelou que não vendera nada até aquele momento: Deus lhe pague! Não! Exijo que o país lhe pague dignidade em forma de oportunidades!

Três, cinco vezes por semana, lá estão os panos de prato, o quadrinho do Yoda, a paçoca do semáforo, a jujuba da fila, as bugigangas dos camelôs.

A república federativa do Brasil derroca enquanto a burguesia estaciona o conversível à porta do restaurante três cifrões.


Comentários

  1. Adorei. Sensível, sofrido!

    Bianca Duqueviz

    ResponderExcluir
  2. Não tem outra palavra: é foda!

    Cynthia Chayb

    ResponderExcluir
  3. É a própria narração da Bolsonaroland, como você fala. Parte o coração de quem pensa na coletividade.

    Luana

    ResponderExcluir
  4. "alternando impotência e anestesia"... Também compro o que posso, faço doações, mas o abismo é profundo demais.

    Fabiola Rech

    ResponderExcluir
  5. parte o coração. Não estou aguentando mais ver essa miséria ser esfregada nas nossas fuças e pouco poder fazer! Que raio de humanidade é essa?

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  6. triste e revoltante o que se tornou esse país.

    Tatu com insônia

    ResponderExcluir
  7. quanta dor, meu Deus.

    Mônica Emery

    ResponderExcluir
  8. triste realidade contada com talento, emoção e solidariedade.

    Adroaldo Quintela Santos

    ResponderExcluir
  9. que belo e contundente texto, minha xará mais brilhante!

    Luciana Barreto

    ResponderExcluir
  10. Aqui em São Paulo está igual . Ou pior ... Muito triste .

    ResponderExcluir
  11. Deveria ser publicado no jornal.

    Karla Liparizzi

    ResponderExcluir
  12. que diagnóstico preciso, mulher, digno do caderno de opinião do Valor Econômico.

    Zildete Melo

    ResponderExcluir
  13. Essa realidade vem se arrastando há anos. Tem muitos atrás, mais de vinte e cinco, ainda no Rio, tb me deparei com uma cena dessas, mas, felizmente, eu tinha um colega de trabalho que conhecia um amigo dentista, o qual se prontificou a ajudar, por um preço bastante acessível (que rateamos) a criança, que tb encontrei na rua com a mãe, nessas condições. São milhares assim, em todos os cantos, que sempre existiram em todos os governos de nossa república, de todos os partidos, vítimas da indiferença de nossos políticos. Mas, na vida, temos todos preços a pagar, se a atitude é boa, o preço é bom, senão será caríssima a contrapartida da indiferença social e moral. Enfim, só Deus, para quem acredita Nele e em suas Leis inatingíveis, e eu nelas acredito.

    ResponderExcluir
  14. Foda mesmo, como disse Cynthia.

    Clarice Veras

    ResponderExcluir
  15. Infelizmente hoje é essa a nossa triste realidade. Não culpo governos que já passaram e nada fizeram nem fariam, já tiveram a chance de mudar a realidade brasileira e não moveram um esforço sequer para o bem da sociedade - incompetência e descaso. Mas cobro do governo de hoje, sempre do hoje, que é quem pode mudar o rumo da miséria do amanhã. Olhar o passado para mudar o futuro, mas nunca isentar ou inocentar o hoje usando o passado como desculpa para justificar o não fazer.

    ResponderExcluir
  16. Vivi esta cena tem poucos dias.
    Asa Norte W3 - A catadora puxava a montanha de lixo e uma menina de três a quatro anos, apoiada nos sacos pretos e azuis lambia a coriza que escorria do nariz à boca. Vestiam trapos e pareciam se divertir com os balões coloridos presos à carroça, seguidos por 'Belinha',
    cadela de estimação. Ofereci ajuda. Ela acenou agradecida, enquanto se equilibrava para não tombar. Aquela visão congelou o meu dia e
    qualquer esperança de alívio para a minha dor. Não obedeceram o semáforo e sumiram na contramão.

    'Penso no paraíso e fico noites em claro (Estação Poética)

    Jandira Costa

    ResponderExcluir
  17. Excelente!!! Já vi a Joana. Ela é uma lenda viva de Brasília. Quem de Brasília nunca a viu? Que alegria ter conhecido você!!!! Obrigada pela oportunidade de ler seus textos!!!

    Flávia Rode

    ResponderExcluir
  18. Triste demais essa realidade com a qual nos deparamos desde sempre, e que embaça o dia e alma de qqr ser que se sinta humano...
    Porque tudo que façamos para amenizar essa ausência de tudo, será muito pouco... Falta de tudo, menos de uma vida, que insiste em pulsar, em escancarar o seu oco, para nós, acomodados em nosso bem-estar e nos constranger profundamente...
    A ponto de nos fazer perguntar se é justo desfrutar do que merecemos pelo nosso trabalho, nosso suor...
    De sermos objetos de ira dos desvalidos, mesmo sem jamais ter explorado ou sugado o sangue de ninguém, para ter direito à casa própria, plano de saúde, 3 ou + refeições nutritivas e bonitas por dia, lazer...
    Apenas fruto do próprio esforço, do acesso e bom uso das oportunidades que nos foram dadas, mas que não existem para essa, cada vez maior, legião de "invisíveis", de miseráveis...
    Duro, muito duro...
    Injusto por demais...
    Inaceitável...

    Marilena Holanda

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos