Hiper-realidade


Ainda na vibe insetívora/inseticida (afinal, tenho agonia deles, bichos estranhíssimos, craquelados, saídos da imaginação bizarra d'algum realismo mágico genial). Seja lá quem criou essas criaturas - deus, big bang, Darwin - certamente é um invento dotado de personalidade e originalidade ímpares.

O caçula estava às voltas com um besouro dias atrás. Colocou o coitado numa tupperware e só descobri quando o pobre jazia, sem uma das perninhas, indefectível de barriga-tanquinho exposta ao céu. Detalhe: ele não leu o meu texto da semana passada. Ele não se interessa pelas ficções sentimentais da mãe. Apenas por livros informativos científicos e musicais.

A mãe, aquela que enxerga conexão telúrica em quase tudo, achou bacana o sincronismo. Detalhe dois: o caçula tem asco à maioria dos insetos. Logo o típico survival boy, sempre disposto a se embrenhar no mato e a rolar em superfícies suspeitas.

Mas os insetos são assim: provocam nossos sentimentos reptilianos paradoxais. Repulsa e excitação muito bem traduzidos em filmes como A Mosca e Mutação. Fiquei matutando sobre o lance do medo, da fobia de bichos neste fimdesemana. Tenho uma amiga que já fez terapia para se livrar do terror aos sapos e afins.

Me parece que esses horrores nascem na tenra infância e, às vezes, acompanham a pessoa por toda a vida. Alguns, infelizmente, fabricados pelos próprios pais. Como uma mãe que interrompeu a curiosidade do gurizinho em se aproximar e passar a mão na Frida. “Cuidado, o cachorro pega!”, gritou, paralisando o desejo natural do filho. Pega não, é mansinha demais da conta. Tarde demais.

Noutras situações, não sabemos onde nascem os monstros, porém lá estão. Eu tinha uma história sobre baratas desde muito novinha. Não recordo mais o fio da meada que me impulsionava a receber as visitas adultas com a mesma ladainha amedrontada. Fato ou fake? Regressão e hipnose possivelmente desvendariam.

A infância é o repositório do hiper-real. Estava com a sobrinha-neta Eva no quintal na manhã de domingo. A menina floresce em descobertas. Dois anos, idade fascinante. Repentinamente, um calango descende o muro. A sombra projetada do bicho lhe tornou grande o suficiente para que, num átimo, a tia-avó míope também o captasse, antes do danado alcançar a grama e se mimetizar ao verde.

Ela apontou o dedinho em pânico, exclamando: Dinda, medo. A mãe da guriazinha ouve o reboliço e explica lá de dentro: ela morre de medo, tia! Como assim, morre de medo? Mora numa casa térrea, habitat de calangos candangos, bichinhos inofensivos embora gosmentos, admito.

É um dinossauro pequeno, Eva. Você não gosta de dinossauros? A menina estática à distância, com as mãozinhas crispadas. Vou tirar uma foto dele para você ver. Pronto: o restante do encontro entre madrinha e afilhada girou em torno da vontade de rever o lagartinho sem rabo (provavelmente devorado por um gatuno esperto).

Atração e aflição. Ela apontava para a imagem mal contendo a gastura e o deslumbramento. Que coisa, não? Uma das dádivas de acompanhar as novas gerações da família é aprender sobre as profundezas que nos habitam à luz do sol.



Comentários

  1. Nossa! eu que sai da terapia agorinha, lidando com estas questões tão profundas da vida adulta e pensando: como diabos isto me habita? ai recaio no universo da criança começando a criar suas dores e condicionamentos!! Ahhh que Eva seja mais livre do que nós!! Ainda bem que a Dinda mostrou que era só um dinossauro gosmento.. rsrs

    Bianca Duqueviz

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  2. Muito interessante esse seu texto Lu, estou fazendo uma meditação para identificação e liberação de traumas, sintomas e eventos que detonam várias questões em nossa vida adulta e claramente em minha auto análise, percebo o quanto as nossas nóias advém de frases ouvidas quando crianças, de nossos pais, dos adultos que nos rodeiam, e que inconscientemente transferem seus medos e crenças, fazendo com que carreguemos ao longo da vida reações, auto ilusões que nos limitam muito…valeu!!!🙏🥰

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  3. AMEI! ADORO o seu jeito de escrever.

    Renata Gonzaga

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  4. Adorei o texto. Lembrei do dia que estava tagarelando com você aqui em casa enquanto escolhia suas roupas limpas na mala para entrar no banho. Daí você já estava no BH, quando vi adentrar na sua mala que havia ficado semi aberta, um ser rastejante. Não tive dúvidas, ou melhor , tive: correr para o lado oposto ou encarar a situação. Pensei... já pensou a Lu chegar em Brasília com essa "recordação "?! Daí abri a mala com um golpe e comecei a procurar o que seria já pra mim um pequeno monstro...eis que você volta para pegar algo esquecido...céus! E eu atracada com sua mala! Lembro da expressão do seu rosto até hoje! As vezes por analogia quando algo me lembra inseto, me vem a cena dantesca na cabeça e começo a rir...
    Ps. Tenho tanta aflição que fui procurar a figura da dita cuja e preferi não poluir a página aqui...deu nervoso Posso com isso?!

    Márcia Renault

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  5. Sensacional! Grande reflexão acerca do que falamos aos nossos filhos! Lu, sua sensibilidade às palavras e os múltiplos efeitos que podem ter é algo extraordinário!

    Da sua fã n. 1:


    Anna Gabis

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  6. Luciana, sejam os bichos, gosmentos ou não, espinhentos ou lisinhos, o medo é instintivo.
    É sobreviver, ou não...
    Me veio à mente "Os Dragões do Éden" do Carl Sagan. As nossas raízes ancestrais, as componentes do nosso cérebro: o complexo límbico e o complexo reptiliano. É tudo muita loucura...
    Beijo,

    Paulo Magno

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