Sísifos
“Onde quero chegar? E lá sei eu? Essa lição aprendi com Rubem Braga: um escritor
precisa saber de onde deseja partir. Quanto ao ponto de chegada, isso não lhe diz respeito. Até porque, a rigor, ele não existe. Um escritor não chega a lugar algum, um escritor se limita a partir e isso já é bastante cansativo. Ainda assim, mesmo não chegando, se caminha. E muito. Então vamos em frente!”
(José Castello)
Ele não tem o apelo grotesco da barata, tantas vezes retratada em excruciantes passagens literárias. Basta fazer uma pesquisa no google para averiguar que o besouro não mereceu livros e crônicas dos cânones da língua portuguesa (talvez não soube procurar. Se conhecerem alguma, me enviem).
O besouro mais famoso do mundo, claro, é um grupo: The Beatles. Depois veio o carro de mesmo nome, mas jamais o automóvel ultrapassou o carisma do fusca. Por aqui, O Escaravelho do Diabo fez história numa geração que soube gostar de ler.
Começar com a letra B, portanto, não garante o sucesso de ninguém. Convenhamos que a palavra escaravelho soa bastante mais eloquente. Assim, a barata segue soberana e asquerosa; as lepidópteras são reverenciadas por sua misteriosa brevidade; os gafanhotos, desagravados por sua voracidade, e o besouro vaga errático na penumbra.
Que nem eu, batendo cabeça nas paredes para aterrissar ao chão, de barriga para cima. Outro dia, rolei e parei em decúbito dorsal. Se não passa um bom samaritano a desemborcá-lo, o coitado sucumbe, desengonçado. Era eu ali, no asfalto, de cabeça para baixo.
Também busco a luz sem elegância alguma. O besouro balofo de pernas curtas e carapaça lustrosa. Desprovido de encantos e de ascos. Ele e eu nos batendo pela vida, errantes e distraídos. Às vezes, causamos espanto à primeira vista, todavia, é apenas o horror passageiro de ser pego desprevenido.
Se o besouro tocar em seu corpo, não é de se morrer de desgosto, creia. Trata-se somente do encontrão entre almas robustas. O besouro e eu, carrinhos de bate-bate em busca de atenção. Tropeço, logo existo.
Eis que ele estava ali, de repente zumbindo pela sala. Me apiedei. Autocomiseração explícita. Apaguei o lustre para colaborar com a miopia do meu alter ego. O besouro foi parar na cozinha, astigmático que só nós, atraídos pelas quinas das mesas, pelos braços do sofá, portais e desníveis das calçadas. Simplesmente não conseguimos escapar do nosso próprio peso. Voamos, mas o custo é alto. Estruturas nada aerodinâmicas para tais arroubos alados.
Queríamos, sim, ser a borboleta amarela do Rubem, a barata da Clarice, o gafanhoto bíblico ou o louva-deus de Valter Hugo Mãe. Contudo, eis-nos besouros de barriga para cima (ou rosto para baixo), à espera de um afago dos transeuntes, possíveis leitores.
Briosos, seguimos na ânsia dessa expectativa: seremos descobertos, desvirados, salvos? A constante solidão do besouro é minha. Morreremos tentando.
Muuito legal esse texto! Não são aerodinâmicos, mas acho tão bonitinhos, voando calmamente com as perninhas meio recolhidas e balançando . Adoro besouros! Acho mto bonito esse seu olhar para o mundo que interessa.
ResponderExcluirKarla Liparizzi
Que texto lindo!! Parabéns escritora maravilhosa...👏👏👏❤️
ResponderExcluirAdorei, Dona Lu.
ResponderExcluirOlhar para o mundo com sensibilidade é muito mais do que apenas contemplar o infinito. Parabéns por colocar toda sensibilidade para decifrar as nuances da vida com poesia e metaforicamente compará-la com a simplicidade da existência. Aceitar nosso destino é um desafio posto pela escolha dos caminhos que desejamos trilhar até conseguirmos ser o queremos conquistar.
ResponderExcluir👏👏👏vivo desvirando esses besouros, quando me dou conta, lá estão de barriga pra cima 😂😂😂
ResponderExcluirLu. Amei muito esse. Mesmo. Já me identifiquei quando você fala do escaravelho do diabo . Esse livro foi muito impactante pra mim na época , doce lembrança . Mas não foi só isso, curti cada palavra colocada, cada escolha . Parabéns. Você já está "desvirada": se fez escritora e ponto final.
ResponderExcluirClarice Veras
Belo texto!
ResponderExcluirConfesso que fiquei imaginando besouros e Lucianas de decúbito ventral e de decúbito dorsal estatelados no chão. KKK!
Karoline Simões
É isso aí!
ResponderExcluirEliane Barreto
Gostei, Lu. Isso aí!
ResponderExcluirLeila Cruz
Às vezes sou um besouro kafkaniano esbarrando na vida... Com asas tolas e voo incerto.
ResponderExcluirEmmanuel
Engraçado isso…rs A gente tem uma tolerância com o besouro, né? Mesmo que ele seja grandão e desajeitado. Talvez seja identificação pura, afinal, não vivemos sozinhos e sempre podemos precisar de alguém pra nos desvirar…
ResponderExcluirLulu, você tem a mão mesmo de grande escritora - da observação do mais comezinho (e que, por vezes, por isso mesmo escapa dos nossos olhos) desdobra um apelo filosófico quanto a nosso ser-estar no mundo, o qual está sempre-sempre em desalinho. Sim, querida, "seremos descobertos, desvirados, salvos? A constante solidão do besouro é minha. Morreremos tentando."
ResponderExcluirBela analogia!
ResponderExcluirVera Mendes
Você é demais, Lu. Sou sua fã!
ResponderExcluirAnna Flávia
Sísifo me definiu tantas vezes...
ResponderExcluirNáfis
Há muitos significantes literários constantes mesmo
ResponderExcluirAlguns mais particulares, outros mais gerais.
Besouro só lembrei de Djavan
Açaí
Guardiã
Zum de besouro
Um imã
Branca é a tez da manhã
Esse verso inclusive foi ridicularizado pelo recém-falecido Artur Xexeo. E o próprio Djavan tratou de desagravar o verso.
Arthur Lima
Uau, LuA!!!
ResponderExcluirVocê, mais uma vez, arrasou!!! Que texto maravilhoso!! Amei!!!
Nossa, pensei ontem em você, disse pra mim mesma que ia te mandar uma mensagem pra saber como está e, pra minha surpresa, eis que me manda esse belíssimo texto!!! Nem preciso mais perguntar como está, pelo seu texto já dá pra saber que está glamourosa!!!! Saudades, querida!! Beijos e muitos parabéns!!
Luciene
ahhhhh não!! Eu estou rindo alto porque me lembrei do tombo, das gargalhadas e do meu susto! Muito longe de ser um besouro solitário, vc é luz e alegria!! E eu ainda me tremo em pensar que poderia ter sido bem pior!!
ResponderExcluirBianca Duqueviz
Adoro seus textos! Uma viagem surpreendente que deixa gostinho de quero mais. 😃
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