Bicampeonato



Ironia define a situação de uma escritora que fratura uma parte do capítulo sem nunca ter escrito um romance. Sem figuras de linguagem, eis o nome do osso quebrado: capítulo.

Ainda não me aventurei pelas trilhas das narrativas caudalosas. Parti direto para a ruptura estilística: pulei etapas, pisei na linha, queimei o saque: ambos os cotovelos parafusados. 100% de aproveitamento nas olimpíadas dos destrambelhados.

Reprogramar o braço a abrir e a fechar como antes ou parecido com antes, num cenário adverso de articulação reconstruída, demanda longo e torturante processo fisioterápico. Posso protagonizar um TED Talks sobre técnicas medievais curativas para dores de cotovelo.

O corpo humano é potência e fragilidade coabitando em camadas: pele, músculos, tendões, nervos e ossos. Sutis, súbitas mudanças na configuração inicial ocasionam gigante efeito cascata em toda a estrutura. Você já não se reconhece e perde a habilidade de fazer movimentos simples como levar a mão à cabeça, descer e baixar o zíper da calça jeans, prender os cabelos.

Ações automáticas as quais nem sequer agradecemos em realizar, repentinamente se tornam uma prova de cinco mil metros com barreiras.

Cada célula do organismo contém dois metros de fita de DNA. Cada célula! Tão bem enroladinha lá dentro as sequências genéticas essenciais. A harmonia, se desafina, produz câncer. Estarrecedor. Alumbramento.

Uma vértebra deslocada coloca um indivíduo numa cadeira de rodas. Em segundos, dor e glória. Medalha de ouro; último lugar.

Ligada nos jogos olímpicos e tentando me superar nos tropeços existenciais, me espanto com a capacidade das pessoas em curar e em aprimorar o próprio corpo. A atleta Sifan Hassan caiu na pista e ainda assim chegou em primeiro na sua bateria.

O tecido muscular estriado e anexado aos ossos pode ser comandado, trabalhado, reconstituído, hipertrofiado. As fibras músculo esqueléticas contraem e relaxam em cada passada, salto, braçada. É o milagre de se manter ativo.

Inspirada pelos jogos, me lanço às provas em várias modalidades: usar o celular com as duas mãos, pegar no garfo com a mão esquerda, escovar os dentes com ambas as mãos, digitar utilizando todos os dedos, segurar um copo cheio de água, revezamento de lados para dormir com um cotovelo estropiado.

Avanço na disputa da segunda olimpíada, categoria: queda em asfalto com duplo parafuso carpado para mulheres binárias. Nesta edição, plenamente titânica, além de receber o reforço de uma âncora nos tendões do braço esquerdo.

Espero bater o meu próprio recorde, me aposentar dos tombos e entrar para a história. Romance, me aguarde!


Comentários

  1. Adorei o texto, o pararelo com as Olimpíadas. TB fico besta c a capacidade de recuperação física e força mental, controle emocional dos atletas. Boa recuperação, menina!

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  2. Ah! Eu imaginei que tivesse sido o osso da ponta, ponta do cotovelo, mas afinal foi o outro. Então vc torceu o braço foi isso. Estava mesmo curioso em saber como foi esta queda. Do momento que vc percebeu que a queda era inevitável até o chão, um livro inteiro pode ser contado... rss

    André Kropotoff

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  3. Esperamos todos este romance!

    Bianca Duqueviz

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  4. Demais! O cotovelo vai mal, mas a cabeça a mil!!!!

    Annie Ruiz

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  5. Sensacional, Lu. Realmente uma escritora quebrar o capítulo foi um feito digno de medalha. Rsrs.

    Clarice Veras

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  6. Mais um texto delicioso de ler. Obrigado, dona Lu.
    Abração pra você.

    Paulo Bigonha

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  7. Triste o assunto; belo o texto.

    Renata Assumpção

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  8. Muito legal!!! Que venham os romances! Ou não! Vc faz cócegas no pensamento com seus textos! Parabéns!
    Ana Cristina

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  9. Muito inspirada, hein? Melhoras para ti!!!

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  10. Se para cada tombo você produzir uma crônica dessa categoria, me sinto tentada a desejar uns escorregões. brincadeirinha.
    Agora, quebrar o capítulo na estreia pode não ser exatamente ironia, mas prenúncio.
    Amei o texto⚘

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  11. Lu, doeu só de ver as radiografias! que vc tenha uma ótima recuperação!

    Fabiana Vasconcelos

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