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"Cuidado para não cair da bicicleta. Cuidado para não esquecer o guarda-chuva"...



Maria não foi destas mães protetoras. Livre, após tantos anos de cabresto patriarcal, costumava dar outro conselho: “se vire, você não é quadrada”.

Também nunca fez canja de galinha para a filha adoentada. Preferia bater uma boa gemada com açúcar caramelizado e com leite de curral. Às vezes, optava pelo mastruz - farto na fazenda - com leite quente. Xô, ziquizira.

Eis uma explicação para as inúmeras quedas da bicicleta, das árvores e dos cavalos; por viver esquecendo a sombrinha e por não ter notícias de fortes resfriados durante a vida.

Ontem, mais uma vez, estava a guria na rua sob o céu zangado sem guarda-chuva. Eram sete quadras a vencer e a possibilidade de que a bronca celeste fosse das mais bravas e inéditas: meados de junho com outra tempestade em Brasília? Valia o risco de se molhar.

Caminhei de olho nas árvores, como sempre, porém com a preocupação de que os galhos permanecessem em seus devidos lugares. Não ventava, então dispus de um ponto a favor. Sem falar no frescor da tarde, perfeito para deambular pela cidade-jardim.

No trajeto, se via de um tudo. Gigantes guapuruvus feridos de morte ao chão, pássaros impossibilitados de voar, quicando assustados no gramado, transeuntes, sim, pedestres! A capital há muito deixou de ser dominada apenas pelos carros, ainda que o estereótipo de cidade sobre rodas permaneça intacto nas narrativas detratoras.

Todavia, as passagens de nível mantém, incólumes, a fama de mal conservadas, mal cheirosas e amedrontadoras. Aproveitei a presença de duas companheiras que desciam as escadas, apressei o passo e me pus logo atrás delas.

Eis que um dos trechos estava alagado pelo temporal exótico da noite anterior. Era atravessar o “eixão da morte” ou atravessar o espelho d’água. Acionei os calcanhares para vencer aquela corrida de obstáculos. Ah, como é bom voltar a ver a luz do sol. Tantos buracos de tatu idealizados por Niemeyer em nome de um horizonte infindo. Há que se pesar os sacrifícios, não?

Retomou a andança pelas calçadas. Não avistou Joana na altura da 205 sul, sempre um desejo. A aparição espantosa ficou por conta de uma dupla de senhoras a empurrar carrinhos de bebês transmutados em cãezinhos.

Um ser humano andrógino seguia à frente numa velocidade de marcha. Ultrapassá-lo tornou-se a meta imediata, mas não conseguiu. Lépida, a figura esguia pegou um atalho à esquerda.

Os pontos de ônibus começaram a se abarrotar com o fim de mais um turno de trabalho. É preciso enfatizar que a maioria dos passantes usava máscara, ufa! E boa parte deles trazia um guarda-chuva a tiracolo. É melhor prevenir do que se ensopar…

Entretanto, não houve zanga. O pranto não caiu. As nuvens cinzas e densas apenas deram o ar de sua beleza grave, sem necessidade de autoafirmação.

Adiante, um menino soltava pipa em plena terça-feira. Estaria ela num túnel do tempo, num buraco de minhoca aberto na própria infância?

Aproximou-se, na tentativa de flagrar a rara brincadeira para as gerações Z e Alpha e tomou nota: o papagaio não era de papel de seda, mas feito com folha de resma branca. Aviãozinho adaptado com rabiola de arraia e linha. Guardou o momento no coração e jogou a chave fora.

Espontâneos de criança são alegrias gratuitas. Bálsamo.


Comentários

  1. 🥰🤗 Narrativa da série Brasília passo a passo 🥰 Fofa

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  2. Adorei 🌹Fiquei torcendo pra não chover em você 😚

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  3. Amei, Lu!

    Maria de Fátima Venceslau

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  4. Bálsamos a pipa, a chuva e os seus contos.

    Bianca Duqueviz

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  5. Maravilhoso passeio mental neste confinamento!

    Um bjo da sua fã n. 1

    Anna Gabis

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  6. Muito bom!!!! sei quem são as duas mães dos “bebês cãozinhos “🤣

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  7. Texto interessante Lu ,fechei os olhos e vi nossa mãe com seu sorriso lindo.

    Leila Cruz

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  8. Tão doce...

    Clarice Veras

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  9. Texto delicioso, adorei.

    Renata Assumpção

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  10. Você consegue nos levar nas palavras. Terminei de ler parecendo que tínhamos caminhado juntas pelos buracos de tatu e calçadas Asa Sul afora!!

    Beijos, querida!

    Mônica Torreão

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