Louise




Manteve as janelas do carro abertas. Nāo se perturbou com o revoar dos cabelos, com o zunido do vento.

Aumentou o som. Pôde ouvir a seleção da Tetê Espíndola que o marido jamais suportou. Tentou cantar naquele mesmo tom de pássaro.

Espertamente, muniu-se de um vidrinho de própolis. A garganta não sentiria o esforço de sobrepujar-se aos ruídos vários e à falta de dom para soprano ligeiríssimo.

Havia bananas e ponkans; água e chocolate, o leal companheiro em formato, embalagem e sabores novos: pistache com flor de sal.

Chocolates bem feitos não costumam decepcionar. Valeu o investimento, vez que expedições sem descobertas ficam capengas, pela metade.

A barra cerâmica de cacau também ficou, mas segurou a gana de chegar ao final da iguaria. Era ainda muito chão sob a própria direção.

Entre Catalão e Cristalina, 183 km dos mais tediosos do Brasil. Cada 100 metros parece se repetir como uma imagem congelada: deserto verde dos dois lados da rodovia. Milho, soja e zero preservação ambiental. Silos, desengonçados espantalhos metálicos, marcam o interminável território triste e desolado de latifundiários.

110, 130… A tentação de vencer uma infinita highway cedeu à prudência. Tirou o pé, porque cantar é quase não se esquecer que a vida tem razão. Além disso, seria um vexame morrer tão moça, durante voo-solo que lhe comprovou: o medo é um sentimento superestimado.

Revezou playlists com estações de rádio ao alcance da busca. Ouviu sofrência e breganejo e suas rimas de beijo com queijo. É possível prever as letras, experimente.

Coisa bizarra o sucesso… Tanto talento dando sopa de batata, porém o que reluz é o jiló.

"Faz assim

Primeiro lugar, você some

Segundo lugar, vira homem

Você é o terceiro que me perdeu"...


"A porta que você fechou, ela chegou metendo o pé

Sabe como é? Acho que não, né?

'Tá aí a diferença de menina pra mulher

Sabe como é? Acho que não, né?

Você 'tá aí, ela 'tá aqui

Você bateu, ela cuidou

Você 'tá aí, ela 'tá aqui

Enquanto 'cê não cresce, arruma um pivete pra chamar de amor"...


Riu-se e chocou-se simultaneamente. Um espanto atrás do outro, a poesia-corna brasileira.

Sentiu dores em ambos os cotovelos. Lembrou-se da fisioterapeuta e amiga Dani: "não aperte o volante com as mãos. Não tensione o corpo". Imediatamente, sacudiu os ombros e afrouxou os braços.

Hora de um pit stop. Um Giraffas-contêiner apareceu como miragem entre as desérticas lojas de pedras e de cristais.

Passava das duas da tarde, porém as mesinhas ao ar livre, o banheiro limpinho e um sanduba recarregaram a energia.

No poente, entrou no Planalto Central ao som da Catedral de Zélia Duncan. Arrepiou-se com conexão telúrica da rádio Nova Brasil, apesar de nunca ter sido seduzida pela versão sem pé nem cabeça da artista.

Os ipês-rosas reconheceram a motorista. Estavam com saudades de flashes.




Comentários

  1. Texto maravilhoso!
    Faz a gente sentir o vento na cara...
    Viajar solo é bom demais!!!

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  2. Adorei isso!!!! .”o medo é um sentimento superestimado”🤔

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  3. Perfeito do incluído ao fim. E poesia-corna foi um achado 😂

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  4. Legal demais, Lu. Da próxima serei Thelma.

    Clarice Veras

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  5. Linda chegada em Brasília.

    Bianca Duqueviz

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  6. Como foi a experiência depois de tantos anos acompanhada? Espero que tenha sido maravilhosa e de grande aprendizagem. Na minha vez, não tive maturidade para curtir.

    Ângela Sollberger

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  7. Lindo, lindo! Dos seus textos mais especiais que já li.

    Débora Cronemberger

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  8. Liberdade sedutora, destrava tudo, ouvidos, medos, sentidos. Bom demais levar a si mesmo pra essa aventura.

    Ana Paula

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  9. Por que Thelma é eu e Louise é ela?
    Qual a marca do chocolate de pistache com flor-de-sal?
    "A vida é que tem razão"! Arrepare a letra! hihi
    Monsieur

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    1. Monsieur Rodrigô,

      letra corrigida, obrigada!
      A marca de chocolate se chama Odle. Nunca tinha visto antes. As embalagens são lindas.
      Ela e eu somos uma só. Às vezes gosto de escrever em terceira pessoa, apenas isso. É um caminho para, quem sabe um dia, conseguir escrever um romance. Também pode ter sido um processo inconsciente de me identificar mais com a Thelma do que com a Louise. A Thelma é a Susan Sarandon, né? Amo de paixão. E ela é mais esperta que a Louise, que amaria essas músicas breganejas todas. KKKK

      Lulupisces

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  10. Realmente o vento sempre nos faz pensar na vida e em tudo que nos cerca.

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  11. Lu, o trecho cristalina-catalão é meu caminho da roça até araguari. Adorei o texto viajado, crítico, soberbo, saudoso.

    Re Osório

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  12. Uma mulher que se diz devota e defensora da última flor do Lácio, inculta e bela, preferir "ponkan"_ a "mexerica" ?
    Jamais vou entender.
    Francamente....

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    1. Hahaha, mas mexerica é aquela pequena, também chamada de bergamota. Ponkan é um tipo, conhecida como mexerica chinesa, grandona e com a casca fofa. Eu amo essa, não a pequenininha. Também pode ser tangerina, acho. Sei lá. Que confusão!

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  13. Amei! Sabe que eu amo dirigir e andar nas estradas da vida, mas nunca sozinha? Será que daria conta?

    Beijos,

    Tania Benn

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  14. Adorei, Lu!

    Ana Cecília Tavares

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  15. Você, a pretexto de texto, pilotando nossa imaginação!

    Lunde Braghini Júnior

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  16. Belo texto continuidade. Sempre gosto!

    Marilena Holanda

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