Thelma





"Navegar é preciso, se não a rotina te cansa"…

Inveja tenho dos rotineiros, dos reservados e de quem sabe matemática. Então eu, sempre no papel de navegadora, assumi o comando da embarcação. Tudo em nome de uma viagem.

Era encarar ou ficar dez dias de férias presa no pandemônio pandêmico, assistindo à CPI como se fosse trazer algo salutar para a vida.

Aprendi a usar o freio motor; reduzir as marchas nos declives abismais da Serra do Mar.

Segui sozinha, atenta, sem contemplar, vício adquirido em tantos anos no banco do passageiro. Não anotei os nomes exóticos dos rios ou das cidades. Não fotografei cada árvore incrível, cada paisagem única. Era dirigir ou desistir.

Preferi arriscar e tive menos medo do que imaginei. As estradas foram gentis com a marinheira solitária: poucos caminhões, manhã de sol, bem conservadas e bem sinalizadas.

Uma salva de palmas para o GPS também, é claro. Ah, se os portugueses conhecessem, de antemão, a exata rota para as Índias...

Um pouco antes de me aproximar de Aparecida/SP, a playlist do Spotify terminou. Resolvi sintonizar nalguma rádio. Gosto muito de passear pelo dial e saber o que as regiões do Brasil estão ouvindo, noticiando, anunciando... Diversão garantida.

Bem-vinda surpresa encontrar uma estação católica que intercalava músicas bacanas com informações sobre o Santuário, biografias de santos e atividades paroquiais.

Logo avistei a imensa basílica à margem esquerda da rodovia e me lembrei da amiga Carmem. Me senti protegida pela fé que emana dela. E pelo locutor que dizia: estamos juntos na casa da mãe, na casa de Maria: Aparecida 104.3 FM.

Certamente mamãe estava ali comigo. Ela e o seu espírito aventureiro não tinham tempo ruim.

No punho direito, o japamala com o berloque de Buda, presente de outra amiga, Marisa. No sinal da cruz, feito quase por instinto naquele momento, minha madrinha.

De repente, o perigo se foi. Acabava de ser envolvida pela ciranda de mulheres sábias, com idades e com histórias diversas e poderosas. De afetos enraizados. Trouxe todas comigo ao encontro de Cynthia, a bruxa-mor; maga-mestra.

Agora, ao também vencer a aflição de dormir sozinha num chalé isolado, o dia troca de turno com a noite. Da janela pontilhada de margaridas, ouço a melodia da água corrente sobre as pedras frias. Sinto o chamado primevo do sagrado feminino.

Era agarrar ou perder tamanho privilégio.


Comentários

  1. Que delicia, certamente ganhou você e ganhamos nós com textos e histórias maravilhosas que você ainda tem para contar depois de 10 dias na estrada.

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  2. Parabéns, orgulho dessa mulher corajosa!

    Bernardo Mello

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  3. olha como a vida surpreende - repito isso sempre pros meus filhos - vc nem imaginava essa chance súbita de viajar assim, solo, e eis aí o novo prisma pra sua verve escritora. Sublime relato neste post! Me lembrou seus relatos feito correspondente jornalística sobre a tragédia das torres gêmeas, os quais guardo até hj impressos.

    Elisabeth Ratz

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  4. Você conheceu o sagrado feminino quando deu à luz e, agora, comandante do seu barco, viveu outra forma dessa força. Mude o caminho determinado. Desligue o GPS. Se permita se perder. E, da próxima vez, entre na Casa da Mãe. Você vai gostar.

    Carmem Cecília

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  5. Texto delicioso. Viajei junto.

    Ana Paula

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  6. Brava! Boa viagem! Belo texto! A força do feminino é impactante e relaxante, me senti em casa.

    Ângela Sollberger

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  7. Adoro mulheres corajosas, fortes, que tem as rédeas. Eita Lú porreta, que Deus te acompanhe nessa Trip maravilhosa, que vai nos render muitos textos deliciosos.

    Renata Assumpção

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  8. Tem piloto no texto!
    "Ah, se os portugueses conhecessem, de antemão, a exata rota para as Índias"...

    Lunde Braghini

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  9. Querida e Preciosa Luciana, certamente uma das suas melhores crônicas. Você me fez ver a estrada, sua inquietação e descoberta, assim como fazem os bons escritores!
    Obrigada.

    Karla Melo

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  10. Parabéns por enfrentar o seu medo! Seu texto foi muito inspirador! Menina canhota e corajosa que voce é!!!

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  11. Delícia de viagem, delícia viajar no seu texto, além de estar no seu coração pela estrada 🤗❤

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  12. KKK, você é demais! Ô mente privilegiada! Seus textos nos levam a viagens imaginárias junto com você! Beijos e obrigada por compartilhar. Aguardando Louise. :)

    Márcia Carvalho

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  13. Muito legal. Gostei da foto do posto tipo anos 70 e a visita aos amigos. Deus te abençoe hoje e sempre.

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  14. Parabéns Lu pelo belíssimo relato dessa aventura incrível, pela coragem de se lançar nessa viagem...até me emociono, pois fiz parte dessa estória, estive com vc o tempo todo...invisível , mas junto, acompanhando os trajetos, tanto na vinda como na volta...te abençoando, enviando muita luz em seu caminho🙌🙌 e no meio desse percurso , o nosso encontro ❤️que foi mágico!!!! 🙏🙏🙏🙏

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  15. Muito bom, Lú!
    Mais que o texto, maravilhosa revelação maior e pura expressão do que é "literalmente, se lançar", empoderar-se de sua própria capacidade, me lembrei de nosso pai: "A necessidade faz o sapo pular"...
    Santa e produtiva necessidade, a força oculta, as várias faces da mesma moeda, a infinita pluralidade feminina!!!
    Adorei irmã, seu voo-solo...
    Em minha primeira viuvez experimentei esse destemor sem medida, esse imenso crescimento humano, enraizado pelas tantas mulheres incomuns, de descomunal força e beleza, como Ana Lorenço de Assunção, Sebastiana Bueno Fernandes, Maria Cruz de Assunção, avós e mãe e todas as "marias", de ontem, hj e amanhã, com raça e gana de viver...

    Marilena Holanda

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