Nevasca no Cerrado


Samuel dos Santos, mas conhecido como tio Barnabé



                                                                                      

                                                                                             Para a amiga Claudia Boudrini


As bolinhas de isopor branco espalhadas ao longo da sarjeta e sobre alguns pontos do gramado eram o gatilho para voltar aos dias de inverno no hemisfério norte. Neve em Brasília? Poético e esquisito. Mais uma prova das alterações climáticas decorrentes do aquecimento global.

Plausível se estivéssemos tratando de um fenômeno natural e não de uma alegoria. Restava, assim, o enigma: as manhãs de caminhada pontilhadas com flocos cuidadosamente picadinhos. Pedaços de isopor de embalagens descartadas ao lixo, ressignificados.

Alguém vinha deixando rastros de sua travessia. Era como se semeasse o chão à espera da colheita de nuvens. Ou polvilhasse a pista com farinha de trigo para transformar a massa asfáltica num apetitoso bolo caseiro.

Tempo de carestia de toda ordem, não me sentia propensa a reprovar a sujeira espalhada nas vias públicas. Os alvos tufos à mercê dos ventos evocavam delicadeza e meticulosidade. Não poderiam, portanto, ser obra de outra ferramenta que não fosse as mãos humanas. Artesanato do caos.

Mas nunca ligara a ação à pessoa. Nunca a oportunidade de flagrar o sistemático gesto de salpicar a terra. Entretanto, num passado recente, capturara o artesão sentado ao pé de um dos estupendos paus-ferros em frente ao prédio residencial. Um digno senhor de cabelos brancos. Um tio Barnabé na primeira versão televisionada do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Faltava-lhe apenas o cachimbo no canto da boca para a perfeita caracterização.

Ao ajustar o foco da câmera na direção dele, a mulher postada do outro lado da rua mergulhou na entonação da personagem do matuto da TV de sua infância. Ele estava absorto, melancólico, como se ali fosse o cenário de Lobato e aguardasse o comando: ação!

Também se assemelhava a uma pintura a óleo manjada, porém bem executada de um raro escravo a alcançar a velhice: arquétipo de um tempo sórdido destacado das páginas de A Cabana do Pai Tomás. Sofrimento, solidão absoluta, alma calejada, olhar terno e perdido.

Ou ainda a aparição do Preto Velho, entidade reverenciada pela Umbanda por representar a ancestralidade africana. Seres de grande elevação espiritual, detentores de conhecimentos da magia e do uso das ervas.

Fosse o que fosse, a tríade não se encaixava na locação urbana. Era mais um borrão abstrato na tela da metrópole a suscitar olhares curiosos ou rotineira indiferença, até que Cláudia parasse o carro, abrisse a janela e matasse a charada:

- Então é você quem pica o isopor tão miudinho… Por quê?
- Para parecer neve e não só sol ou chuva. Eu acho bonito.

Então era de fato a encarnação do Preto Velho, com poderes para confundir as estações do ano. 

Claudia lhe deu uma nota de cinco reais, ele perguntou se ela não tinha uma de 20. Não, ela não costumava carregar dinheiro vivo na bolsa. Gostaria de recompensar o meteorologista que provoca nevascas de outono no cerrado. Todavia ficou impotente diante do incalculável mistério.


Comentários

  1. Ótimo! Só falta nevar mesmo, mas não duvido mais de nada

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  2. Amiga escritora, grata pelo presente, por colocar em palavras quem vi e senti. Bjos.

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  3. Legal Lu, como seria bom um dedinho de neve em nossa capital

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  4. Delícia de texto! Mistura de cultura, simplicidade, doçura... Amei. É gostoso quando a história nos leva consigo, nos faz ver e sentir as emoções do autor. De certo forma, eu também vi tudo isso rolar.

    Maria Aparecida

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  5. Talento que chama, né?
    Que alma talentosa você tem!

    Elaine Novetti

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  6. Figurinhas da cidade que só quem tem olhar afiado enxerga.

    Karla Liparizzi

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  7. Legal conseguir olhar para o ambiente e extrair pérolas para a nossa vida. Bom dia!

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  8. Leitura boa. Mistério decifrado rápido. Imaginação ventando ao visualizar neve no planalto central. Amei.

    Paulinha

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  9. Todos já disseram tudo. Nada mais a declarar. Muito a sentir. Pouco a expressar, muito a suspirar. Saudades dos bons tempos vividos, logo ali...

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  10. Muito bom como sempre, amiga.

    Cecília Soares

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  11. Maravilha! Disfarço o tempo como quem brinca de Tom & Jerry.

    Jandira

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