Trem de pouso


Uma das notícias mais bizarras da pandemia (eleição complicada) foi aquela sobre as pessoas que estavam comprando passagens do nada para lugar nenhum, apenas por saudades de entrar num avião.


Como assim? Aos medrosos, despertou gatilhos anestesiados pelo confinamento social. Não pousar? Vagar furando nuvens por horas seguidas com os tremeliques típicos e a zoeira característica das turbinas? Mais vale um gosto do que uma carrada de abóbora, dizia minha goiana mamãe. Para tudo, quero descer!


Saudades de viajar, tenho muita, todos os dias. “Ó meu amor não fique triste, saudade existe pra quem sabe ter, minha vida cigana me afastou de você”... Me identifico com Nomadland: a vastidão existencial sem limitações. Meu lance é road trips. Passaria o resto da vida, de boa, sem um pingo de carência do portão de embarque.

Todavia o planeta é tão grande e os inventores nunca criam o teletransporte - reitero o protesto - que viajar (de preferência não num Boeing 737 Max) é preciso. E como a vida é irônica, vou, num futuro próximo, ser vizinha do aeroporto.

Ontem estava no terreno, observando, ao longe, as aeronaves a ganhar altura como pequenos pássaros de fogo. Algumas delas tiravam fino da imponente lua rosa de abril, aquela imagem eternizada do voo do ET, tá ligado? Se estava bonito para a gente cá embaixo, devia estar estupendo pela janelinha do lado esquerdo. Involuntariamente, um calafrio me sacudiu. Com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, avante!

Entretanto, me lembrei de algumas cenas deslumbrantes que só poderiam acontecer a bordo de uma lata de atum (mais gostoso do que sardinha) pressurizada. Fogos de artifício de cima para baixo, já conferiram? O voo era curto, Nova Iorque-Washington, por isso o comandante optou por não subir à altitude cruzeiro. De repente, deu o sinal: senhores passageiros, não percam o campo de luzes coloridas no céu. It's the 4th of July, dudes!

Não, ele não falou dude, of course. Talvez, folks. Mas eu era a própria mané abobalhada com a experiência do nascer-morrer ritmado daqueles buquês fluorescentes. Quase esqueci que estava dentro do avião. Quando abstraio nessas condições de temperatura e de pressão claustrofóbicas, é mágico.

Outro momento poético na poltrona se deu durante a aproximação da cidade de Foz do Iguaçu. Ainda não sobrevoei a Amazônia (postergo, no misto de pânico e de falta de grana), mas o vislumbre da gigantesca serpente chamada Rio Paraná e do mar verde do Parque Nacional das Cataratas do Iguaçu me atiçaram a empreender uma epopeia sobre as copas das árvores da maior floresta tropical do mundo.

Chegar ao arquipélago de Fernando de Noronha, pela primeira vez, ainda que tenha sido num avião à hélice, também foi de tirar o fôlego. Senhor Roarke, o avião! Era eu ali, pousando na ilha da fantasia: alívio e alegria.

Decolar do Santos Dumont numa noite de lua cheia: não é necessário explicar mais nada. Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro…

Cruzar a mítica Cordilheira dos Andes rumo a Santiago do Chile: angústia e beatitude na mesma medida.

“Chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”, compreendo. Porém, não abro mão do momento de retornar ao chão. Formidável é sentir o trem de pouso encostando na pista. Trem é comigo mesma, o transporte ideal para os contemplativos.

Troco mil turbulências leves por aquele solavanco bruto. Disfuncional eu sou, eu sou demais... E sei que sou assim porque assim voar me faz... 


Comentários

  1. Que maravilha!!! dessas panorâmicas, posso afirmar o deslumbramento de chegar em Noronha e decolar e aterrisar do Santos Dumont, tanto com lua, como no por do sol🙏😍

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  2. Como sempre contos divertidos, que nos tiram da realidade , por alguns minutos servindo de alento ao coração!

    Obrigada!

    Da sua fã n. 1

    Anna Gabis

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  3. Bora, nem que seja de Uber pássaro! KKK!

    Maria de Fátima Venceslau

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  4. Hahaha, tamos juntas!!! E a foto, tópis!

    Ana Cristina de Aguiar

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  5. Meu Deus, é paranoia que chama, né, Lu? KKKK!

    Leila Sebastiana da Cruz

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  6. Compartilho com vc a mesma sensação de alívio quando o trem de pouso encosta no chão. Ainda conto alguns segundos, para ter certeza que não vai se meter a besta de arremeter. Ufa!!!
    Tem coisa pior do que entrar naquele tubo de aço? Beijos,

    Tania Benn

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  7. Como boa Sagitária nem preciso dizer que viagem é meu sobrenome. Algumas dessas imagens que vc descreve também já senti. O mundo é lindo.
    Daqui tive o privilégio, pela localização e idade, de usufruir dos trens.
    A Mogiana já nos levou muito pelas cidades desse estado. Sempre fico dolorida em ver os trilhos abandonados.
    Obrigada pela viagem prazerosa.

    Ana Paula

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  8. Achei lindo.

    Bianca Duqueviz

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