Fase arbórea





Para Ana Cristina de Aguiar


Sob os auspícios de Joana, a andarilha, aliás, sumida, cadê a cabeleira branca a despontar pelos gramados verdes da cidade como um dente de leão em movimento? - me lancei por trajetos nunca dantes percorridos a pé.

Brasília na pandemia tem alternado momentos da década de 1970 e caos apocalipse zumbi da Era de Aquarius, que chegou quebrando a banca. Quem diria que estaria doendo na carne um reality Stranger Things? Arrego de fazer parte desse upside down world. Peço para sair, capitão Nascimento.

Mas não deveria reclamar. Admito não ter o legítimo lugar de fala, pois o meu campo de observação é o Plano Piloto, área privilegiada da capital da República, bastante arborizada, calçada e com pouca densidade populacional. Experimentar um toque de recolher nessas condições é infinitamente mais razoável. O regime semiaberto me permite descer e caminhar por um parque urbano dos mais bucólicos. Dá para não surtar, ao menos por enquanto.

Ainda mais agora, quando as árvores plantadas à época da inauguração da utopia alcançaram a majestosa maturidade. São verdadeiras sábias espalhadas por onde a vista alcança. Umas gigantes e compridas como periscópios. Outras retorcidas como mouras tortas, porém todas magníficas druidas na casa dos 60. Envelhecem com serenidade, ainda que às vezes não aguentem a própria barra e tombem. Magas não são imortais, somente longevas. Eis uma lição botânica.

Será etnocentrismo ou miopia analisar as árvores sob a ótica da feminilidade? Provável. A fartura de ramificações e de sombras nos remete ao estereótipo da mãe protetora, acolhedora. O arquétipo de gaia nos conforta. Em tempos ignóbeis, carecemos da mitologia ancestral. Não de bicho homem-mito. Esses daí são os verdadeiros desmatadores do futuro.

Uma amiga minha perguntou se eu estaria atravessando uma "fase arbórea". Sei lá, sempre fui conectada a elas, desde menina quando, destemida, subia até os mais altos galhos de mangueiras, de goiabeiras e do baruzeiro onde fiz minha casa imaginária na infância de roça.

Cair de árvore não me traumatizou, muito pelo contrário. Sinto saudades da agilidade, da elasticidade e da inocência que me transformavam numa macaquinha saltitante a honrar os primatas que habitam em nós.

Hoje, dolorosamente, sinto-me mais próxima dos paquidermes, na segurança dos pés cravados na terra. Entretanto, humilde, me aproximo das deusas, olho para o alto e reverencio os ensinamentos a mim transmitidos em tantas conversas espetaculares.

Por isso, dei de Joana, a louca, e saí a pé por aí, mirando e admirando árvores familiares e desconhecidas; em verde novo e decadentes.

Pulei galhos podados ao chão. Vi troncos despedaçados pelas tempestades de verão. Afora, venci oito quilômetros de caminhada, sem headfones. Não queria distração além da proporcionada de forma natural. E consegui, na escassez dos poucos semelhantes em vigília nas paradas de ônibus aqui e acolá. A Brasília das quatro - e cada vez mais das duas rodas - voltou como um dejá-vu desagradável. Prefiro a cidade do século 21, tomada pelos pedestres.

As sentinelas, no entanto, seguiram ao meu lado, garantindo frescor e alegria. De variadas idades e copas, reafirmavam o nosso parentesco.


Comentários

  1. Belo texto.Lu, deu saudade daí🙂27/02 passado fez 49 anos, agora estando um ano fora 48 que cheguei em Brasília, e muitas dessas árvores da 303, vi ainda em pequenos arbustos...🥰

    ResponderExcluir
  2. Que beleza, querida! Tá aí de onde vem sua frondosaidade.

    ResponderExcluir
  3. Risos, impossível parar. "Peço para sair, capitão Nascimento. ". Permitido, soldado. Excelente texto.

    ResponderExcluir
  4. Achei lindo demais!

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  5. Abençoada fase arbórea!

    Clarice Veras

    ResponderExcluir
  6. "Fase arbórea"? Show!

    Rodrigo Holanda

    ResponderExcluir
  7. Lindo!
    E você foi a pé até o Egrégio!!!!

    Bianca Duqueviz

    ResponderExcluir
  8. Lindo, Lu!

    Rosa Carolina

    ResponderExcluir
  9. Muito bom passear com você nos seus textos. Adoro também!
    Senti falta dos pássaros.

    Karla Liparizzi

    ResponderExcluir
  10. Leitura gostosa! Mesmo pandêmica!

    Socorro Melo

    ResponderExcluir
  11. Como está escritora me eleva por tê-la como sobrinha de coração.

    Maria Helena Ferreira Andrade

    ResponderExcluir
  12. Estava com saudades de ler esses textos maravilhosos!

    Eliana Dias

    ResponderExcluir
  13. Ter um texto desses dedicado a mim é um afago em tempos doídos. Você sabe o quanto eu também curtia andar entre essas magas, tão generosas em sombra para aliviar o sol ardido da capital federal. Obrigada!

    Ana Cristina de Aguiar

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos