Pandemônio




Para as Macabéas que há em nós

A tarde ainda minava, não do centro da terra, mas da abóbada celeste. Um pingo caiu na testa da moça, contudo ela não interrompeu o fluxo da gota, que atravessou os cílios e desaguou no olho direito. Transformou-se numa "furtiva lágrima", belo título da obra de Nélida Piñon. E, antes dela, o nome da última ária de uma ópera de Donizetti. 

Sombrio entardecer. O sol se esquivou das responsabilidades de verão. Anda fazendo pouco caso: aparece e se manda, exausto do posto de astro-rei. Se ao menos pudesse abdicar da monarquia tal qual o tal Harry...

Deu um perdido e as nuvens tomaram a cena. Dramáticas e sensíveis, não se importam em chorar como carpideiras.

Aliás, nada mais apropriado para o momento do que o lamento copioso e ininterrupto dos céus diante de um país de mortos e de moribundos, constatou a donzela enquanto pulava uma poça, tentando não molhar o sapato que comprara não havia dois meses. 

Maldita lama nas calçadas e na política!, bufou, quase escorregando ao desviar de um trecho de calçamento quebrado no caminho para casa. 

A cidade apodrece em folhas e galhos vencidos pelo aguaceiro. O país agoniza sob as tempestades da ineficiência.

O (des)presidente foi a pé do Palácio do Planalto ao prédio do Congresso Nacional, ouviu no noticiário da rádio. Tenta manter a sua (des)forma de atleta, adora aparecer, o bobalhão, ruminou a jovem, enquanto esperava cruzar a rua molhada e veloz, salpicada de motoristas insanos para subsistir às sucessivas noites pandemônicas.


Comentários

  1. "Lamento copioso e ininterrupto dos céus". Belo e triste, pois até os céus choram por nós.

    Maria Félix Fontele

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  2. Lindo!

    Cristina Porto Costa

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  3. Olha, esse texto é de uma elegância fenomenal. Coloca pra compartilhar Lú, quero colocar para o mundo ler.

    Renata Assumpção

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  4. Ótima!

    Ângela Sollberger

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  5. Tá foda, mas o texto tá lindo!

    Clarice Veras

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  6. Ufa! Fiquei achando que mais alguma coisa ruim iria acontecer no final .
    Adorei o texto. O que me tocou foi a preocupação com os sapatos novos e a observação de onde pisava . Que legal ! Me senti como se fosse eu a protagonista.

    Karla Liparizzi

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  7. "Maldita lama nas calçadas e na política!". Excelente, Loo!

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  8. Penso que cada um de nós tem haver com essa personagem...invoca a reflexão, sempre bela escrita Lu...bjus!

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  9. O lamaçal do Bozo não permite que sejamos leves.

    Tania Benn

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  10. Que intrigante! Qual foi a fonte de inspiração?

    Márcia Romão

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