Anotações de meia-idade




"na chuva procuro
um poema
que me leve enxuto
enquanto minh’alma
enxurrada
escreve versos
agarrados
em barquinhos
de papéis"
(Reginaldo Gontijo)

As manhãs da semana estão modorrentas. Aliaram-se num pacto para retardar o cinquentenário. 

Aos 40, minha mãe morria. Aos 50, é a pandemia a matar mais rápido e tristemente do que o câncer que a dizimou. Dizimar soa dramático, contudo é o verbo para alguém que sucumbe dia após dia, perdendo o contato com a realidade de si e dos que lhe amam. 

Comecei a escrever uma espécie de inventário da primeira metade da minha vida. Cheirou à autoindulgência. Cheguei ao ano de 2001 e me senti exaurida de tantos acontecimentos. Naquele ano, então: morar nos EUA; testemunhar o atentado às Torres Gêmeas...

Hoje, Marisa, irmã de data-natal invertida (12-02), faz 60 anos. No próximo domingo, sigo no encalço dela, com dez anos de atraso (lapso temporal que lhe fez conhecer e conviver com um arranjo familiar totalmente distinto do meu, moldando nossos respectivos olhares sobre o mundo). 

Marisa me disse: “tinha dez anos quando você fez 1. Parece ontem”. 

Bom para ela, alma leve num corpo redondinho e fofinho. Minha percepção sobre todos esses anos não é tão inocente.

As lacunas existem, você salta - só lhe cabe saltar sobre as fendas - e mirar quão fundas elas são: perda do pai, perda da figura paterna, perda de uma sobrinha que seria sua afilhada, perda da mãe, perda da avó dos meus filhos numa idade na qual eles jamais se lembrarão dela.

Esta década entre minha irmã e eu abrange um sem fim de sentimentos além da óbvia distância geracional. Ela experimentou relacionamentos que me foram ceifados. Eu vivenciei experiências de conforto material e de liberdade jamais concebidos pelos que vieram bem antes de mim. 
Tudo só para concluir o visível: a vida é gangorra, pêndulo: o ganha e perde inclusivo. Ninguém é imune à travessia. Não na mesma medida, isso seria falsear a realidade. Órfãos de pai e/ou de mãe em tenra idade largam, de certa forma, capengas de esperança. Não faço aqui nenhuma afirmação autopiedosa para receber emojis de força ou de amor. Apenas constato. 

Por outro lado, é possível se capacitar para transformar os limões acres em limonadas suíças. De preferência, preparadas pela tia Leila, insuperáveis até o momento. 

Terapia, viagens incríveis, amigos de toda vida, professores bacanas, o casamento, a maternidade. São variados os muros de contenção para não ruir à atração nefasta dos buracos negros da alma. Portanto, convém celebrar; não ceder aos revezes da caminhada. 

Salve, mana! Ursinha carinhosa, peça única e original de uma fábrica fechada noutro século. 

Sigo perseguindo você e a sua paz, sempre dez anos atrás, porém eternamente dez anos à frente, pois a mim coube romper o aquário e fazer a piracema.


Comentários

  1. Devo dizer que você está melhor a cada dia. Abraços apertados.

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  2. Parabéns pra sua mana👏👏👏e procê tb já às vésperas de sair da casa dos quarenta e entrando nos cinquentinha...idade ótima viu? 🙏🤗

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  3. Amei o texto.
    E viva a Prima Marisa!

    Mônica Martins

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  4. Texto lindo. Tocou minha alma. Parabéns pra sua irmã Marisa.

    Renata Assumpção

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  5. Uau !!Grande escritora, parabéns! E aproveito para parabenizar também Marisa que Deus abençoe vocês poderosamente, derramando ricas bênçãos dos céus!

    Terezina Militão

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  6. Muito lindo isso, querida Loo. Salve, salve, Marisa! Gostei muito de "Ninguém é imune à travessia".

    Marisa Reis

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  7. Tivemos um encontro tardio. Desses 50, acompanhei os últimos 15 ou 17 com interesse sempre renovado.

    Valdeir Jr.

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  8. Amei o texto, parabéns!

    Ana Claudia Loiola

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  9. Adoro ser cinquentona. Espero que você também. Nos resta pouco tempo, vamos aproveitar!
    Seus textos muitas vezes despertam meus sentidos. Dessa vez foi o tato. Deu vontade de apertar a fofinha. :)

    Karla Liparizzi

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  10. Texto maravilhoso, principalmente o final dele: aquário cedendo lugar aos peixes.

    André Luiz Alvez

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  11. Querida Lucina, sabia que eu estou nesse grupo grupo dos dez anos à sua frente? Porque nesse ano já me tornarei sexagenário. E como você, um pouco mais do que você, sinto as perdas de pessoas que fizeram parte da minha vida. C'est la vie...

    Um beijo,

    Paulo Magno

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