O último baile na ilha da fantasia








“Ficara assombrado porque nunca estivera em uma casa tão bela antes. Mas o que dava àquela casa uma atmosfera intensa e mágica, que lhe cortava a respiração, era o fato de que Daisy morava lá - de que a mansão era para ela tão casual como a tenda no acampamento para ele. Havia um mistério delicioso naquela casa, uma sugestão de quartos de dormir no andar de cima mais lindos e mais frescos do que quaisquer outros quartos, uma sugestão de atividades alegres e radiantes que transcorriam ao longo de seus corredores, uma promessa de romances que não estavam mofados nem guardados como lençóis em lavanda, mas recentes, respirando e exalando o perfume de cintilantes carros último modelo”...
(F. Scott FitzGerald)


4:48 am. Acordados os ponteiros do relógio e eu na madrugada escura de outono. O silêncio da rua amplifica o tic-tac monocórdico. Em tempos outros já haveria certo zum-zum-zum de carros no início da manhã de trabalho. Mas estamos em tempos de surrealismo existencial. E nada como um sonho vívido para nos manter no limbo entre o real e o desvario.

Era uma grande festa na casa que meu pai começou a construir na QL 10 do Lago Sul. Deixou a fundaçāo, a caçula de 11 meses e morreu.

A matriarca tocou o projeto com muitas dificuldades. O que era para ser o lar da família de sete filhos, grandes paredes de vidro, linhas modernistas, virou aluguel e sustento para a viúva e seus órfãos menores de idade. 

Apenas 18 anos mais tarde pudemos desfrutar daquele primeiro sonho de meu pai. Houve momentos de muita alegria ali, que voltaram nesse sonho festivo.

Os vizinhos e amigos do segundo andar, o casal 20, compraram a casa e fizeram uma ampla reforma. Todavia, não roubaram a essência da arquitetura de luminosidade idealizada por papai (ao contrário do que aconteceu de fato. Mamãe vendeu a casa quando todos os filhos se casaram e os novos moradores botaram a residência de dois pavimentos no chão, erguendo outra totalmente diferente num piscar de olhos).

Agora penso o quanto minha mãe deve ter se sentido ferida com o sonho dela e de meu pai duas vezes demolidos. Contudo, no meu passeio onírico, a casa ainda estava quase como a original, apenas mais ampla, com a retirada de algumas paredes. 

Os anfitriões, os vizinhos do segundo andar, entendem como poucos a arte de receber. Me senti dentro de uma das incríveis badalações de O Grande Gatsby (aliás, um dos livros mais bem escritos da literatura mundial). 

Zanzava entre os convivas tentando relembrar o lugar onde morei por cinco, seis anos. Aqui tinha uma porta, ali uma janela. As pessoas bebiam, riam, dançavam e curtiam o pôr do sol da extensa laje elevada, a oferecer vista cinematográfica do Lago Paranoá. (Creio que deve ter sido o pensamento de papai ao desenhar aquele espaço aberto, mas, na real, foram erguidas duas mansões exageradas, trambolhos, ao fim da rua, obstruindo o horizonte). 

Reencontrei alguns amigos que não vejo há tempos nesse baile chique de Marc Chagall. Havia varais de luzinhas espalhados pelo gramado e ao redor da piscina (pouco usada por nós, de água geladíssima). E Anne (até o nome é puro glamour), fazendo as vezes que fora de mamãe, mostrava sua realização arquitetônica para os convidados, embevecidos com tanta elegância. 

De repente, contou que costumava pegar um barco-táxi para visitar a própria mãe em outro conjunto do bairro. Adorei imaginar Brasília como Hamburgo, Veneza, Nova Iorque, quem sabe o Delta do Tigre… Aquele vai e vem de barquinhos transportando as pessoas de uma margem à outra ou de um lado só, entre as ruas dos lagos sul e norte. 

Acho que acordei nesse ponto, ainda ouvindo a big band da festa de arromba dos meus vizinhos, gentis e animados de verdade. Mamãe aprovaria as modificações no projeto original. E, se na festa estivesse, seria, sem dúvida, a mais reluzente da noite. Obrigada pelo convite, casal 20!


Comentários

  1. Que delícia de texto, Lu! Adorei!

    Maria de Fátima Venceslau

    ResponderExcluir
  2. ����

    Quando eu sonho nestes dias, são semi pesadelos, acordo sempre meio agitada, com o humor alterado... Queria a festa com os varais de luzinhas e a big band!!!

    Bianca Duqueviz

    ResponderExcluir
  3. Legal, Luciana!
    Eu, com a minha lerdeza, demorei um pouco a perceber, na segunda parte, que se tratava de um sonho!
    Muito louco.
    Um beijo,

    Paulo Magno.

    ResponderExcluir
  4. Querida!
    Adorei o sonho!
    Gostaria muito de morar numa casa. Acho que esse não irei realizar como muitos outros.
    A vida é assim: devemos aceitar as coisas como são.
    Sempre arrasa. Escreve de uma forma doce e realista. Adoro...

    Anne

    ResponderExcluir
  5. Amei o livro sobre o último baile da Ilha Fiscal, do Josué Montello. Não sei se vc gosta dele, mas fica a dica. Besos
    Também gostei do Grande Gatsby. Mas não desse último filme. Achei muito cansativo.

    Mônica Ramos Emery

    ResponderExcluir
  6. Que delícia! "Os ponteiros do relógio acordados", amei! Escreva outro livro, please!

    Karla Liparizzi.

    ResponderExcluir
  7. Boa tarde Lulu me desculpe a demora em lhe responder e seguir. Parabéns pelo seu blog.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos