Bruta e Bela






O silêncio entre um entregador do Ifood e outro é quebrado pelo nostálgico som sincopado de cascos de cavalos em desfile pela calçada que vejo do parapeito. Às vezes a Asa Sul nos brinda com certa fleuma inglesa. Um desejo de ser aristocrática e tradicional, em contraponto com a turba universitária da Asa Norte: espelho, gêmea, projeção de liberdade e rebeldia que se opõe à obediência das primeiras quadras sulinas propostas por Lúcio Costa e Niemeyer.

Há algumas árvores de realeza ao longo da Asa Sul. Guapuruvús, com seus troncos longilíneos que se abrem numa copa radial e majestosa de verde e lindas flores amarelas. Sibipirunas, Ipês, Angicos, Barrigudas, Flamboyants e Fícus gigantescos transformados em portais, repletos de dreads. Frondosos, não se intimidam frente ao árido clima do cerrado, pelo contrário: destacam-se na paisagem retorcida da savana brasileira.

Transitam cães fidalgos também pelas calçadas nem sempre civilizadas da Asa Sul: border collies, pembroke welsh corgis, lulus da pomerânia, shih tzus. E, dentre eles, vagabundos convivendo com damas. Ministros das altas cortes de Justiça caminham disfarçados de plebeus. Senadores e deputados também, o que muitas vezes nos faz desviar do trajeto.

O lado sulista do Plano Piloto tem quadras-modelo e escolas-parque públicas-modelo, como se o Brasil respeitasse exemplos de urbanismo e de bom gosto. E falando em elegância, a Asa Sul tem uma igrejinha que está sempre pronta para decolar ao primeiro vento de outono.

Há apartamentos de mais de 200 metros quadrados na Asa Sul. De um tempo onde luxo significava espaço e não o número de suítes apertadas. Houve época em que eles não valiam tanto quanto pesam e, desse modo, o bairro de pendor soberbo não é tão elitizado como alguns gostariam. Sem falar nos prédios sem pilotis das 400, fincados ao chão para que a frivolidade não suba à cabeça de ninguém (quem dera).

Atualmente a Asa Sul se equilibra num voo rasante entre a decadência e a renovação. Empenas e fachadas se remodelam, outras mostram o desgaste dos anos no setor mais antigo da capital, adjetivo exagerado para uma cidade de apenas 60 anos. 

Os moradores, a maioria avós, agora acompanham das janelas a chegada de novas gerações. Os parquinhos, antes abandonados por ausência de crianças, revitalizam-se com a algazarra infantil.

A Asa Sul, nossa Copacabana, não pretende morrer de velha. A Higienópolis do planalto central hoje tem aulas de yoga nos gramados, piqueniques, agendados pelas redes sociais, nas grandes áreas de lazer entre as quadras e um sem fim de bikes de todos os tamanhos a cruzar suas ciclovias. 

As casas da 700 parecem saídas de um conto de Grimm, sombrio e encantado. Cercas arabescas, jardins secretos e mal cuidados são florestas que escondem perigos. Outras reformas, contemporâneas, abrem uma clareira de atualidade nas fileiras geminadas de habitações. 

E assim se desenrola a narrativa década a década. Alternando paradoxos e contrastes, a Asa Sul resiste na utopia de uma cidade sonhada para ser perfeita, porém transfigurada pela realidade bruta e bela de um país surreal. 



Comentários

  1. Como sempre escreve seus textos muito bem Lu👋🌹

    ResponderExcluir
  2. Prima, você voa mesmo! Quanta imaginação e criatividade. Não conheço bem a Asa Sul, mas me vi passeando por ela. Gostei. Sua mente é infinita! KKK!

    Jôsy Militão

    ResponderExcluir
  3. Eu adorei, Lu. Um monte de palavras gostosas de se pronunciar... Vou ler em voz alta só para sentir cada palavra na minha boca (roçando na língua de Luís de Camões)!

    Bianca Duqueviz

    ResponderExcluir
  4. Voou muito bem e não escorregou na maionese.

    Márcia Carvalho

    ResponderExcluir
  5. Ahhh, que lindo! Como vc consegue mostrar uma realidade tão poeticamente? Até a soberba da Asa Sul ficou linda em suas palavras! Kkkk

    ResponderExcluir
  6. Bom-dia, caminheira asa-sulista. Amei a homenagem a nossa plaga.

    Rodrigo Chaves

    ResponderExcluir
  7. Belíssimo texto Lu, tb me senti passeando por aqui, mas com um olhar mais apurado e mais lírico. Obrigada, amiga!!!

    ResponderExcluir
  8. Continue voando! Que descrição da Asa Sul!

    Cynthia Chayb

    ResponderExcluir
  9. Lú, adorei o texto. Sua riqueza de detalhes sempre me faz viajar. Brasília é uma cidade nova, tem quase a mesma idade do apartamento em que moro em São Paulo. Que bom ver que ela está se revitalizando e não se degradando.

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  10. Legal o texto, Lú.
    Surreal é uma boa definição para o Brasil... Que pena, um país tão rico e belo, e de gente boa também.

    Marilena Holanda

    ResponderExcluir
  11. Amei. Só para quem conhece bem Brasília.

    Ana Cecília Tavares

    ResponderExcluir
  12. Bom dia! Adorei o texto, a descrição sob sua ótica singular das quadras da Asa Sul, o passeio das pessoas, a beleza das árvores, os cães... Mal pude esperar as últimas linhas para comentar. O comentário sobre os ministros foi de gargalhar.

    Márcia Romão

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos