Folguedos


Os meninos-Portinari içam suas pipas coloridas contra o céu zangado. Eram muitos com camisetas vermelhas e pés no asfalto, uma horda de velejadores aéreos a manejar pesos e contrapesos, administrando as rajadas de vento e a permanência das rabiolas na altura dos sonhos mais alegres.
Outro grupo, este com meninas, passa uma bola de mão em mão, naquela ciranda instintiva da infância. Disputam espaço com carros estacionados.
Sem árvores à vista, a chama do mormaço derrete as crianças-velas sobre a cobertura asfáltica. É uma festa.
A algazarra límpida da periferia viceja sem as benesses do planejamento urbano. A elite, enclausurada pelo dinheiro, jamais experimentará o valor destes folguedos.



Rupturas
recomeços
mudar em meio à mudança.
Partir
repartir.

O silêncio passeia pelo interior,
mão da criança invisível tateando a parede.

De fora chega a nesga do sol
e o silvo dos micos costumeiros.

Os cães aprisionados ao lado
lamuriam.

Quero que durmam para sempre.



Parafraseando o belo título do livro de Joan Didion, acho que 87 é o ano da “morte mágica” para mulheres incríveis. Tanto a própria Didion quanto Marina Colassanti e Maria Teresa Horta partiram nesta idade. Minha sogra, vovó Paula, também. Espécimes femininos das maiores elegância e agudeza mental.
Lúcidas e produtivas, despediram-se desta existência que nos cabe, sabe-se lá uma ou milhares de vezes, com galhardia. Oxalá eu possa persistir envelhecendo até alcançar o número mirífico com a mesma inabalável robustez de espírito.
Acho que é uma boa dezena para encarar novos projetos.




Ontem acordei, desci ainda meio sonolenta e bastante míope. Aperto os olhos para avistar Miúcha adentrando a cozinha, vindo do quintal com algo atravessando a sua boca. Jesus amado, começou o pesadelo. Lá vem ela com algum bicho gosmento entre os dentes. Um presente.
Segurei o asco e a vontade de gritar, enxotando a bichana. Seria o fim do afeto recíproco. Paralisada restei, deixando que ela depositasse o horror aos meus pés.
Era apenas a folha da mangueira.
A miopia não poupa a gente de dramas desnecessários.
Desmanchei-me de alívio.


O maracujá que queria ser um mamão, pois assim achava mais chique, com nome composto e saboreado às colheradas.


O sol pincela-se sobre os objetos
hipnotizante.

Aura etérea ao mundano
pátina áurea nas reentrâncias.

Lâmina astronômica.

Eras cósmicas milenares
observáveis a olho nu,
ainda que viajem à velocidade da luz.

Banho de ouro impermanente,
deidade.






Comentários

  1. Gracias Lu, tão booommm te ler!!!e oh Miúcha tão doce🤗 o meu certa vez nos trouxe de presente um passarinho todo destroçado😏
    Cynthia 🪷

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  2. Ah, a poesia! Como viver sem ela?

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  3. Cada foto , hein ? AMEI os textos .
    A minha presbiopia tb dá um trabalho... 🥴😂 só que para perto 💋💋

    Karla Liparizzi

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  4. Aprendi uma nova palavra nas suas: mirífico. Curti, vou adotar. 😉
    E a dança das luzes pelas aberturas da casa é mesmo coisa mirífica!
    Vez em qdo somos visitadas por um arco-íris, entra pela janela do banheiro da Ana. Lindinho!

    Isabel Frantz

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  5. Minha amiga amei todos os seu textos são excelentes!!

    Mabel

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  6. A madrugada foi breve para ler todos seus escritos.
    Aprendi novas palavras até que o deus do sono me prostrou e só acordei com uma chuvinha como pauta musical cantando lá fora.
    Vez em quando envio o seu blog para o André.
    O que vc faz é pura mágica.

    Jandira Costa

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  7. Oi Luciana! Tava lendo teu blog agora! Muito bacana! Curioso vc mencionar a Joan Didion, O Ano do Pensamento Mágico é o livro que estou lendo nesse momento😉

    Eduardo

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