Fechar e abrir novas gestalts


Agora a mudança está premente. Começou o entra e sai de corretores de imóveis em busca de um orçamento para alugar o apê. A visita de empresas ou cooperativas transportadoras de cacarecos também.
E como os temos. É num momento assim que vemos o tanto que acumulamos. “São muitas miudezas para embalar, vamos orçar três dias”. Ó céus, o museu do artesanato vai cobrar um preço alto pelo deslocamento do seu acervo.
Eu que tô de férias chata resolvendo, evidentemente, chateações, não posso deixar de rir da cara espantada dos pretendentes a embaladores.
Corretores enxergam cada senão no imóvel, as pequenas ranhuras e os defeitinhos. Como editores de texto minuciosos, apontam os erros de grafia e de pontuação. “A reforma não é luxuosa, mas é um bom apartamento, não fica atrás do posto, e voltaram a usar tacos de madeira”.
E assim vou me despedindo da vida na superquadra 303 sul, para sempre sinônimo da gravidez do caçula, da morte da minha mãe, da infância e da adolescência dos meus filhos, das minhas aulas de yoga na igreja São Camilo de Léllis, da alegria de viver no exato prédio onde morou Renato Russo.
Uma vizinhança afetuosa e tranquila. O vizinho abaixo é bolsonarista, mas é gente boa. Aqui fazemos quase tudo a pé e nunca me canso de achar que o máximo da civilidade é poder morar num parque urbano que, em resumo, é o conceito mais lindo do que seja superquadra.
Entretanto, a vontade de passar uma temporada com jardim e com quintal falou alto, principalmente após o processo profundamente desgastante (para mim) da pandemia. Menina criada na roça, acostumada à liberdade rural, tomei abuso da falta de varanda. Acho que a maturidade está me deixando cada dia mais espaçosa.
Vou seguir a vocação de velha das plantas aos moldes da minha mãe, das irmãs que me antecederam. Sujar as unhas acostumadas ao ofício de escrever com húmus. Quem sabe fazer geleias de amora e de pitangas.
Um filho musicista também contribui para a sensação de que o apartamento virou um contêiner. Partituras, instrumentos, estantes, sons que inundam e transbordam. Lindo é, cansativo idem. Horas e horas de ensaios batendo na mesma tecla, tocando o mesmo estudo. Sem falar que os dois jovens adultos já não querem e não devem compartilhar o mesmo quarto. Tá, isso hoje em dia, né? Pois minhas irmãs adultas dividiram um dormitório por muito tempo. Antes todo mundo vivia com menos e tava de bom tamanho.
Às vezes penso que é uma maluquice ir para uma casa quando os filhos estão saindo do ninho. Todavia se eu não experimentar, estarei sempre no limbo do e se. E se a gente cansar, não der conta, poderemos retornar para este que continua sendo o nosso apartamento.
Mudar gera novas energias e desafios diferentes. Ressignifica rotinas, é oportunidade de fazer Feng Shui e de se livrar do que não mais nos cabe.
O Lago Norte tem tantos velhinhos. A minha futura rua, então. “A Flórida de Brasília”, brincou, pero no mucho, meu marido. O casal idoso vizinho da frente também é do time dos patriotas de araque, com uma grande bandeira nacional esticada na garagem.
Anteontem conheci outro morador do conjunto de forma inusitada. Dos fundos da casa, pelo corredor lateral que leva à piscina, surge um cara estilo meganha. Estava conversando com o mestre de obras. “Meu pai é delegado de polícia aposentado, se chama Ozi(?) Rômulo”, se apresentou. Bem que se vê, quis responder. Ah, que coincidência, meu caçula também se chama Rômulo, respondi.
Começou um monólogo: sou faixa preta disso e daquilo. Eu seguia sentada à mureta, pois fotografava uns fungos fotogênicos. Fui aluno do mestre Takeshi Miura, a senhora sabe quem é, né? Sim, todo mundo que nasceu em Brasília e já passou dos 50 sabe, meu bem. Pensei, mas não externei, pois ele falava, falava, falava. Ainda mais a senhora que também é japonesa, né? HaHaHa, lá vem, lá vem, lá vem de novo as diversas personas que carrego: quando não sou colombiana, sou panamenha ou japinha ou tailandesa, árabe, talvez? Sou não, creio que tenho sangue indígena. Não, não pode ser, a senhora é branca!
Espero sair da falência em breve para me submeter àquele famoso teste de DNA e tascar toda a minha ancestralidade real na cara dos caretas. Acho que vou aproveitar minha hispanidade fake e fincar uma desbundante Wiphala* à entrada da casa infinito (para mim), casa dos trapézios (para o cientista), bem ao lado da árvore pau-brasil.


*A wiphala é uma bandeira quadriculada com sete cores que representa os povos dos Andes. A palavra tem origem nas palavras da
língua aimará eiphay, expressão de alegria, e phalax, que é o sonho produzido por conduzir uma bandeira.

Comentários

  1. Mudanças são sempre recomeços que começam com a grande loucura que é se mudar 🤣
    Que seja uma nova fase linda, Lulu! E é um conforto certamente saber que o amado apartamento continua lá. Beijão e boa sorte!

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  2. A mudança física (de materiais, móveis, cacarecos), antecede e já mostra o que se pode esperar da mudança de rotinas!
    Ah! Eu gosto dessa idéia do novo, de viver novas experiências!
    Acho que vai ser o máximo!
    Bem vinda ao Lago Norte, irmã!!!

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  3. Curtindo nesse domingo chuvoso, esse gostoso texto Lu
    sobre esse momento de transição de vcs🙏desejo toda as melhores vibrações pra vcs! casa nova , vida nova🥰
    Cynthia

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  4. Infinitos trapézios, trapézios infinitos, Flórida brasiliense, indígena tailandesa... Tempo de mudança é espaço pra reinvenção. Bem-vinda à experiência Casa. Que seja infinita enquanto dure. ;)

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  5. A escrita, agora, terá tinta de húmus ♡. Boa entrada no oásis!

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  6. qdo os filhotes voarem, sempre voltarao ao lar, com seus filhotes, para os aniversarios, os natais, os dias das maes, os infaliveis almoços dos domingos; e ai vc vai ver que sua casa precisa ser grande para receber a filharada com a netaiada, as noras, e ainda emprestar a casa para comemorar os aniversarios dos filhos e dos netos, pois ai tem espaço para reunioes familiares, coisa que apartamentos nao têm, além dos quatos de hóspedes para, caso algum filho se mande para o mundo, sempre que ele voltar ao ninho com a familia, tera seu lugar á sua espera. sempre morei em casa, a exemplo de vc, passei parte da infancia na roça, nunca me acostumei com apartamento....pouco espaço, sem quintal, sem plantas, como v disse,,,,,tenho limoes, romas,, acerola, jabuticaba e muitas plantas, em um pequeno espaço de terra, que dona Nilce cuida com o maior carinho e amor. meus filhos voltam sempre, os de fora e os daqui, e sempre tem lugar para eles e nossos netos., vc vai gostar de voltar ás origens. Desejo muuuita felicidade, alegrias infinitas em sua nova vida "terraquea."... ps. ainda tem uma mini horta, que fornece algumas folhagens e ervas.

    Severino

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  7. Porque vc brinca tao seria e lindamente com as palavras, vai uma wiphala pra vc, guardada da última viagem com muito carinho pelo exato mesmo motivo, honrar esse lado de que muitos de nós tanto nos orgulhamos!

    Eugenia Jardim

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  8. Que show de lugar, como não se acostumar com todo esse espaço? A casa logo estará cheia, vem os netos , noras...
    Dei boas gargalhadas com a parte nipônica, sempre te vi tão brasileira.
    Mudar é bom, repensamos tudo e carregamos as lembranças dentro do melhor compartimento, o coração 💓 Boa sorte na nova fase, nessa casa deliciosa, que já tem energia de lar.

    Renata Assumpção

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  9. Essa nova fase também vai ser maravilhosa e cheia de bons momentos!

    Liana Melo

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  10. Já está na fase final da mudança?
    O Natal vai ser na nova casa?
    Deve estar uma loucura, todo mundo colaborando, vai mais rápido 👍🏽
    Toda vez que vou nos médicos da 716 vejo a ex casa de vocês, como o tempo passou, tua mãe administrando todos vocês, uma irmã, e a comadre Jandira,☺️
    Tenha uma boa mudança, uma boa estada na nova 🏠
    Vamos nos ver, antes de fechar as portas. 🤝

    Cristina

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  11. Essa mudança deve ser uma mistura de sentimentos…
    Já quero experimentar as geleias😍
    Que bom que não venderão ❤️

    Djelaine

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  12. Lu, impressionante este negócio de te acharem japonesa... rsrs
    Quanta coisa em duas semanas de férias.... A mudança, deixar para trás o apartamento de anos!!! Uma vida foi vivida... rsrs

    Bianca

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  13. Adorei o texto minha amiga...aliás qual texto seu que não gosto?!?!
    Mas esse particularmente entrei de cabeça e me transportei para a vida real que ele nos leva. Me vi em todos os assuntos e lugares, querendo me meter nas conversas, dar pitaco na obra, dizer que fiz o teste do DNA e é mega interessante. Aliás é genial.
    Enfim, o lago norte foi minha casa por 12 anos! E toda vez que vou a Brasília e entro no SHIN meu coração bate mais forte.
    Que essa nova morada traga à vocês muitos momentos e dia a dia felizes, que é o que importa ...1 dia de cada vez! 🍀😘

    Márcia Renault

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  14. Querida família, daqui, daculá, de sempre…

    De início, a tristeza em saber que perderemos essa energia maravilhosa, esses moleques lindos, esse casal alto astral no nosso “quintal”…

    Por outro lado, é bem mais importante, é saber que os nossos amigos continuarão nossos amigos, estarão curtindo uma nova e deliciosa fase na vida, um momento almejado por muitos e realizado por poucos.

    Vão com Deus!!! Curtam os novos espaços, o canteiro, a horta, a nova rotina, os novos pássaros, as novas árvores.

    Que sejam muito, muito, muitíssimo felizes na nova morada, e que sempre passem pela 303 para um lanche, uma festa, umas fotografias.

    Beijos e abraços, muito obrigado por tudo!!

    Beijos para os 4!!!

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  15. Gostei bastante.
    Mas discordo:
    bolsonarista gente boa??? 🙄
    Não acredito.
    O mais elegante adjetivo que posso proferir é desavisado, ou como sou uma buscadores espiritual, me esforço em dizer "irmão adormecido".

    Karla Melo

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  16. Lindo texto, parabéns e boa sorte nesse recomeço.

    Alexandra

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  17. Lu, os novos ares serão uma maravilha para sua criatividade sempre pulsante. Eu adorei esse texto, curti cada palavra. Parabéns por tudo: a família linda, a casa deliciosa, o texto especial e a coragem de mudar 💜

    Clarice Veras

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  18. Luciana do céu!!
    Mudança!!
    Loucura!!
    Loucura boa!
    Renovação, e, muito trabalho, no início!!
    Depois, tudo se ajeita e se acalma...
    Boa mudança!!
    Muita Força pra vocês!!

    Paulo Magno

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  19. A casinha ficou muito linda! As mudanças sempre são bem vindas, trazem novos ares, novos hobbies, novas perspectivas. É muito bom ter uma varanda, para apreciar um jardim florido!

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  20. Adoreiiiii ❤️❤️❤️❤️
    Serão muito felizes na nova casa ❤️❤️❤️😍😍

    Karla Liparizzi

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