Gigante gentil



Um piano bem tocado é imbatível. Engraçado ter me vindo à cabeça exatamente este adjetivo, uma vez que não se bate num piano nem com uma flor. Quanto mais belamente acionadas as teclas, mais suave é, ainda que a composição exija vigor e rapidez estonteantes para mãos que parecem agir independentemente dos braços. Mãos autônomas como a Mãozinha da Família Addams (usei essa analogia antes, mas Renato Russo me absolve).

Pois ontem foi uma noite sublime. A sala de teatro da Poupex é o que de melhor temos em Brasília no momento que parece infinito, quando o Teatro Nacional Cláudio Santoro segue agonizando em Eixo Monumental público.

Som muito bom, cadeiras confortáveis, iluminação acolhedora, acústica idem, estacionamento amplo. Espaço perfeito para abrigar óperas, concertos, recitais e outras apresentações mais intimistas, apesar de não ser pequeno, muito pelo contrário. O único senão é ficar distante das paradas de ônibus e das estações de metrô.

A plateia também estava de parabéns. Pouquíssimos espirros, tosses esparsas, crianças presentes bem comportadas. Acostumada que estou ao certo caos da galera nos eventos da Escola de Música de Brasília, me senti reconfortada como em Sampa ou em NY. Sem afetação, gente, apenas constatação sobre audiências já adestradas para apreciação da música clássica. É outra história quando você pode realmente mergulhar na beleza de algumas composições imortais.

A responsável por todo o hipnotismo? A russa Anastasiya Evsina. Altiva (e alta) presença, nada falou, somente tocou. Entretanto não soou nadica de nada arrogante. Com seu coque perfeito e perfil esguio (a banqueta até pareceu pequena para o porte de deusa sem adornos além do talento), executou obras-primas de Frédéric Chopin e de Alexander Scriabin num nível que eu nunca tive a oportunidade de ver ao vivo. E tudo de graça, visse?

Lembrei muito do saudoso amigo da infância, Toninho, que na adolescência gostava de tocar Chopin. Vizinho da ponta do bloco, me chamou a atenção para o inefável deslumbramento daquele instrumento enorme capaz de ser tão fluido. Elefantes, baleias, pianos… Os gigantes gentis.

Ao meu lado, um casal cochichando em russo dava o tom da noite internacional. Saudades intensas de todas as maravilhas que desfrutamos em casas de concertos alhures. Meu caçula, hoje quase um jovem adulto e clarinetista, começou sua paixão sem volta pelas partituras lá, aos 8 anos, numa escola pública do estado de Nova Iorque.

Antes que ele se vá, que sua existência enigmática e silenciosa me escorra de vez pelos dedos. Antes que eu não possa mais me sentar tão próximo dele e até deitar minha cabeça no seu ombro ossudo, aceito boa parte de seus convites. Não que seja um sacrifício ouvir boa música, entretanto não só de orquestras se vive a vida.

Agora entendo o que é ser mãe de atleta profissional. Não basta estar ali, tem de prestigiar todo o universo no qual o filho habita. É a maneira que encontrei para conviver com ele e saber, por exemplo, que o rapaz odeia química. “Eu não consigo prestar atenção nas aulas, começo a viajar. Acho muito chato”. (Renato Russo o absolve também).




Comentários

  1. Ouvir boa música, clássica ou não, e ainda, compartilhando gosto pelo belo e convivência familiar, é gratificante, nos faz melhores...

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  2. O mais impactante foi a sua foto. É seu filho clarinetista? 🤩🤩🤩
    Que menino bonito 😍😍😍

    Karla Liparizzi

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  3. Está absolvidíssimo!

    Bianca Duqueviz

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  4. Belo texto, bela foto!!! ouvir boa música nos eleva🙏✨
    Cynthia

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  5. 🥰🥰🥰🥰🥰🥰

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  6. Que lindo!
    Parabéns!

    Regiane

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  7. Bom dia, Lu! Poxa, tão focado em concluir cotas que acabei esquecendo. Acredita? Pelo menos tem seu belo registro. Quando vc disse que era uma pianista russa já soube que seria especial. Eles são incríveis! Obrigado por compartilhar 😉

    Eduardo

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  8. Como dizia Nietzsche: “Sem a música a vida seria um erro.” 🎵 🎵 🎵

    Adriano Shulc

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  9. Nossa que saudades estava de suas crônicas.
    Adorei, Lú, aproveita mesmo antes que o passarinho voe. Que programa delicioso esse, faz tempo que não vou em um recital, audição.
    O Cultura Artística está quase pronto, vai ficar fácil, a ACM é do lado.

    Renata Assumpção

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  10. Luciana, o garoto, que você tem ali, ao seu lado, no final do texto acima, é o Rômulo?
    Eu não o reconheceria...

    Paulo Magno

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  11. Desde a mãe escritora apreciadora de música passando pela pianista russa até o filho clarinetista habitante de mundos para além de Brasília 🥰prazer estar c vcs Daqui lhes escuto lhes admiro e lhes vejo nas fotos 👏🏼😍Obrigada pelo texto imagem som Beleza 🙏🏼🌹

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  12. Suas crônicas são músicas clássicas para os meus ouvidos. Amo! ❤️

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