Mixórdia (mamãe falava michórnia e eu achava lindo)


Do sul, onde faz divisa com o estado da Bahia, ao norte, que deságua no mar de Luís Correia, fizemos 1.100 km. Só de Piauí.
Caraúbas
Caxingó
Piracuruca
Campo Maior
Piripiri
Buriti dos Melos
Canto dos Buritis
Esperantina…
Nomes que afagam.
Haja vastidão neste país. O Piauí ele próprio uma nação de belezas ímpares e de cultura singular.
Paredões paleolíticos, rupestres pinturas compartilham a ancestralidade com o novos modelos de agronegócio.
Escassos agora são os jegues cor de asfalto. Todavia, segue abundante por aqui a intensidade de sabores, de afetos, de calor do sol e das pessoas.
Aliás, tudo o que não falta nessas léguas longínquas é sol, sol, sol. Energia solar para clarear as insondáveis escuridões. O sertão, buraco amarelo.
Bem pontuou a amiga Karla ao ver as fotos que tirei: "o Sol aí parece maior".
À beira-mar, as varandas das redes bailam sob a regência eólica possante, incessante.
Ipês, caneleiros, mutambas, angicos, sapucaranas se irmanam à caatinga. Carnaúbas carnudas,
carnaubais: surubas vegetais.
Cipós, corpos enroscados destilando suores intensos de um verão interminável.
Piauí, caju suculento. Sua cica nos penetra, se apossa da gente. Nódoa afetiva. Saga.
Cajuína.



Motos como moscas
borboletas amarelas espatifam no para-brisas
nuvens avançam sobre o asfalto sem trégua.
Miragens
caladas tumbas caiadas
esparsas reminiscências.
Veredas de carnaúbas onde descansam cabras gaiatas e jumentos resignados.
A fidalguia adormecida de Parnaíba
Piauí-Jeri-Preá
maré grande
maré pequena
pois tá.
Jijoca
Camocim
cirandas de crianças
carmim.
Pipas, praias,
parnaso, paraíso.
Aliterações litorâneas.



Vovó Paula mergulhou definitivamente nas ondas da Praia da Atalaia, no Piauí, sua preferida. As cinzas de seu corpo se mesclaram à espuma, irmanaram-se à areia.
O poente é um poema perene, assim como as memórias dela em nossas vidas. Saudades sempre, vovó!



Em dois mil km dá pra ouvir Ednardo, Belchior, Amelinha e mais todo o pessoal do Ceará. Clodo e Climério do Angical do Piauí, Elba e Zé Ramalhos (recordam do tempo em que diziam serem os dois parentes?),
Crash Test Dummies, Simon and Garfunkel e os BBBs alemães (Bach, Beethoven e Brahms), nas intermináveis playlists do clarinetista.
Rola chorinho, sucessos da MPB dos anos 70, Rita e a tentativa de encontrar uma rádio que toque algo além da sofrência e das vulgaridades atuais (assumo o rótulo de elitista cultural).
Falando nisso, como falta ao brasileiro a capacidade de respeitar o espaço de silêncio do outro. E de sonoridade também. A cacofonia de músicas nas alturas em qualquer lugar do litoral do Piauí e do Ceará é atordoante. Assim como em grande parte de nossas cidades. Sem falar nos lamentáveis carros de som tirando o juízo da gente.
Tirante este desabafo, tem-se a possibilidade de caminhar para longe e adentrar numa praia papel de parede.
Voltando à estrada, é longa, entretanto, melhor modal de aula sobre o país não há. Vegetação, geografia, hidrografia, clima, regionalismos linguísticos, gastronômicos, culturais. Macro e micro economias, latifúndios e subsistências.
É o Brasil visto de dentro, do avesso. As costuras bem feitas ou as mal ajambradas.
No geral, rodamos para a frente. Penso que teríamos avançado mais sem os recentes quatro anos anencéfalos.
As rodovias e as currutelas se aprimoram a cada travessia, apesar da corrupção persistente.
A internet é um caminho sem volta, assim como a busca por uma existência mais digna. Não me incluo no rol dos otimistas natos, todavia creio que as boas práticas planetárias estão se enraizando lentamente nas pedreiras.
Toda a mixórdia nacional pode virar outra coisa, até mesmo uma nação.




Comentários

  1. Como eu amo a sua visão do Piauí ❤️

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  2. Que textos ótimos 👌pode até fazer um livro com suas narrações de suas viagens, Lulu!

    Leila Cruz

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  3. Escrita maravilhosa!😘

    Fátima Venceslau

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  4. Você escreveu o novo relicário do nordeste!!
    Eu tinha lido uma parte no face e já tinha curtido lá... qd li as outras partes, achei que dava para emoldurar.
    Que viagem linda... cada lugar fantástico e ainda desconhecido!!
    Vi até fotos fofíssimas suas com o Bernardo e seus seguranças ...

    Bianca Duqueviz

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  5. Meu pai falava michórnia também. KKK!

    Márcia Romão

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  6. Adorei, Lu!

    André Torres

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  7. Poema muito legal!

    Dante Filho

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  8. Estava com saudades desses textos seu. Muito bom. Mariana agora tem um amiguinho do Piauí no escritório que trabalha, a visão dele de mundo é muito diferente da dela, morro de rir e estou observando o aprendizado dela.
    Um país tão grande e tão pobre. Será que isso vai mudar algum dia? Não sou pessimista, mas nesse caso não consigo ser muito otimista.😘

    Renata Assumpção

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  9. Amei, olhar e textos!

    Karla Liparizzi

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  10. Assumo o elitismo cultural também!!

    Uma poesia chamada Piauí 👏👏👏👏

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  11. Menina! Estava pensando em vc, acredita?!
    Pensei: Lu sumiu
    E vc mandou…
    Obs. Vc estava na minha cartinha para mim mesma despedindo de 2023 rs
    Falei sobre a escrita da pisciana…
    Posso mandar para uma amiga piauiense que morou em Brasília muito tempo e, há uns anos, voltou pra lá?

    Karol Simões

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  12. Muito, muito bonito! Me deu uma saudade do Piauí...

    Giovana Tempesta

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  13. Lindas narrações e reflexões de viagem!!!!

    Sempre textos apaixonantes

    Da sua sumida, mas ainda fã n. 1

    Anna Gabis

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  14. Que lindo texto !! Uma poeta.
    Fico tão feliz quando elogiam meu Piauí 🥰

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