Voos

Toquei nas costas do anjo enquanto dormia

Surpreendida pelo fato: eles têm costas macias, 

recobertas por penugens,

plumas.

Costas-asas.

Desvelei o segredo, velei o sono de céu, 

véus translúcidos como a opala.

Estremeceu, estremeci.

Em breve o alado partirá.

Com ele, meu coração longe do corpo.

Uma botinha nos pés e mil ideias na cabeça. Lembranças de caminhos percorridos no outono em Manhattan e também no interior do estado de Nova Iorque: privilégio que me foi ofertado pelo pós-doutorado do cientista.

Recordações das instigantes aulas no Westchester Community College. O respiro do dia na rotina da stay home mom.

Parava o carro e seguia adiante pelo campus bem cuidado, quase impecável, localizado nas vizinhanças de um cemitério belíssimo, sereno. Aliás, tudo ali naquele condado era bom gosto e tranquilidade.

A botinha estampada também transitou por lápides, anjos e escrituras. Prazer indelével sair de uma aula sobre “Budismo e Cristianismo: diferenças e semelhanças” e caminhar entre o céu e a terra com a segurança de quem não seria importunada, assediada, interrompida.

Noutro bimestre foram as classes a respeito da arte no período renascentista. Lá estava, de novo, o par de botas trilheiro, confortável, companheiro.

Éramos inseparáveis no clima instável acima do Trópico de Câncer e dentro do meu coração: deslumbramento e banzo; excitação e tédio.

De volta ao Brasil, as botinhas experimentaram o ostracismo. Meses intermináveis no escuro do armário. Longas e monótonas conversas com os casacos, também no ocaso. Não entendiam a súbita rejeição. Não sabiam que estavam distantes das quatro estações, das locações cinematográficas.

Quando chove, procuro a parceira para um flashback. Há oito anos somos amigas.

Calçado afetivo.