Eu posso estar morrendo, mas a crônica, jamais!
Gosto de fechar os olhos
Fugir do tempo, de me perder
Posso até perder a hora
Mas sei que já passou das 6h…
(Herbert Vianna)
Não perdi o hábito de ouvir rádio no carro. Não cai na tentação das playlists para o dia a dia no trânsito. É bom ser surpreendida por canções há muito não tocadas. E também mudar de estação quando rola aquele jabá chiclete que, de cinco em cinco minutos, explode nos altos falantes.
Hoje foi um dia no qual dirigi mais do que o habitual. Estive no Lago Sul, cruzei da Asa Sul até o fim da Asa Norte, o trajeto das tardes de quarta, retornei para a Asa Sul.
Não é nada comparado com o que a maior parte dos motoristas enfrenta diariamente, se não estão no Plano Piloto. Mas fico cansada, pois sempre preferi navegar a pilotar.
Por outro lado, escutei vários versos boníssimos de nossos MPB/rock como
Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira.
É quando eu me encontro perdido nas coisas que eu criei
E eu não sei
Eu não vejo além da fumaça
O amor e as coisas livres…
Quando muito ainda é pouco
Você quer, infantil e louco
um sol acima do sol…
Assim foram desfrutados, com as janelas abertas e com a luz seca e intensa de agosto. Ah, agosto, relação de amor e de ódio brasiliense.
Conceição de Freitas publicou hoje um texto brilhante e pungente onde afirmou que, se Brasília fosse um mês, seria esse, o oitavo do ano, com seus paradoxos de abundância para a minoria que vive nas alturas, dentro do avião, versus os que percorrem de ônibus e a pé as léguas saarianas diárias:
“Agosto só não é agosto nas superquadras, todas elas envoltas em bosques idílicos com árvores gordas e cabeludas que já ultrapassam os seis andares. Mas o Plano Piloto abriga menos de 10% da população do DF, ou seja, de cada 10 habitantes do quadrado, 1 mora no paraíso dos blocos entremeados de bosques, jardins e gramados. Toda vez que chega agosto, sinto todo o desgosto de deixar de gostar de Brasília”.
Eu sou uma dessas felizardas da capital do país da meritocracia de araque. Sempre morei no Plano Piloto. Talvez por isso minha escolha seria outra. Se Brasília fosse um mês, penso em abril, quando tudo é mais leve do que o ar e ainda chove.
Do agosto candango, quero apenas manter distância segura. Porque ele, sem dúvida, é uma aberração que nos joga na cara a crueza escaldante das nossas desigualdades.
Contudo, hoje pareceu agosto, mas não pareceu. Estava bonito, apesar daquela poeira suspensa dominante no horizonte. Senti falta da exuberância dos ipês amarelos que, até o momento, andam meio encabulados.
Cantarolei e observei as cenas ao redor. Um homem com um bebê ao colo na varanda do sexto andar de frente para o pôr do sol; uma mulher de short descendo de bike pelo gramado inclinado do Conic; um barbudão trajando luto da cabeça aos pés. De suas costas despontava o cabo de uma espada samurai (ou de uma raquete de tênis?) de dentro da mochila também preta.
Parei daqui pra resolver uma coisa, estacionei dali para pegar o óleo de copaíba salvador em tempos extremos. O guardador de carros (fenômeno esdrúxulo) pergunta se a moça - eu, que lindo - está bem. Digo que sim, ainda que a dor numa das bandas da bunda (entesófito glúteo mínimo à esquerda com sinal de edema) esteja me matando após uma jornada de oito, nove horas no salto (lá vai eu aposentar outra sandália).
- Só de já tá vivo tá bom, né?
Se o rapaz na rua me constata isso, que legitimidade tenho para contestar?
Sem um mísero centavo na carteira, lhe ofereci um pão doce de padaria que acabara de comprar para os meus filhotes bem nutridos.
Enquanto isso, uma dupla de frades franciscanos atravessou com tranquilidade a faixa de pedestres.
Agosto de Deus.
Prima, bom-dia e Deus lhe abençoe!
ResponderExcluirLinda crônica....bjosss 🙏🏽
Eni Assunção
Lindo texto Lu🤗eu daqui me despedindo, fechando um longo ciclo nessa cidade, que aprendi a gostar, com seus encantos e desencantos🙏🥰
ResponderExcluirCynthia
Belo texto, Lu! Só vc para extrair beleza do mês de agosto❤️
ResponderExcluirQue curioso isso, né? Eu nunca senti o agosto na minha vida! Só vivi isso quando me mudei pra Brasília.
Tati Barros
Delícia de texto!! Curti com meu café, antes de entrar no mundo dos e-mails e relatórios!! ❤️
ResponderExcluirAnamaria Raposo
Gostosa de ler essa crônica.
ResponderExcluirNoélia Ribeiro
Lindo texto, amei!
ResponderExcluirAndré Luiz Alvez
ResponderExcluirAmiga poético-talentosa.
Claudia Boldrini
Ahhhh ainda bem que suas crônicas não morrem!!
ResponderExcluirBianca Duqueviz
Que linda reflexão sobre agosto! O mês de agosto tem um significado especial pra mim!
ResponderExcluirÉ lindo você traduzir a vida e colocar em palavras a voz do coração! Amei!
Obrigada por compartilhar!
Larissa Bastos
Lu, eu li a coluna do Julian Fuks no dia em que ela saiu.
ResponderExcluirInfelizmente, do jeito que vivemos hoje, acho que ele tem uma certa razão. Enquanto eu lia, pensei no Rubem Braga… Fortemente e com uma ternura imensa.
Você, Lu, é resistência, por isso acho que a crônica ainda não morreu. Eu comprei o livro da Clarice que você me indicou e coloquei um papelzinho com uma anotação do texto do Fuks dentro. Eu fico feliz por ter certeza de que você nunca vai deixar de escrever crônicas… Espero, de coração, que outros autores continuem acreditando que olhar o mundo é preciso.
Beijos no coração!
🥰🥰🥰
Adriana Tullio
Achei que encontrei aqui uma “Clarice Lispector” no nosso cerrado com seu inconfundível estilo intimista .
ResponderExcluirAdriano Schulc
Amei!
ResponderExcluirCadê os ipês? Sem eles, que graça agosto?
Tania Benn
hahahahaha, ele decreta o fim e eu crio o segundo desafio de crônicas. Vida longa ao meu gênero favorito da literatura e que os bons nos orientem.
ResponderExcluirLunna Guedes