Ninguém chega, ninguém sai






Quando eles proibirem todo mundo de sair na rua, o que vão fazer com os mendigos?, perguntou Romulito. A pergunta ficou na minha cabeça durante o dia, latejando. Quando desci com a Frida, no fim da tarde, para uma volta mais importante para mim do que para ela, vi que eles, os moradores dessas mesmas ruas pelas quais eu passo contemplando flores, árvores e outros cães, saltam aos olhos, pois diante da evacuação da classe média, das crianças bem nutridas e dos trabalhadores do comércio, tudo o que resta nos arredores são eles, aqui e ali, sozinhos ou em pequenos grupos amontoados.

Eles estão ocupando os espaços antes ruidosos dos parquinhos repletos de meninas e meninos frenéticos. O silêncio do coração na mão reina. De repente, um dos homens sem nome ou rosto, ao longe (sim, eu passei ao largo) inicia um acesso de tosse. Que seja cachaça, crack ou catarro.

Não queria escrever, mas uma boa amiga que não faz parte das redes sociais, se aposentou no ano passado, me pediu que contasse um pouco do que como está sendo para mim toda essa situação.

De certa forma, já vivi experiência de confinamento nos EUA. O inverno e a condição de forasteira nos deixaram ilhados em muitos momentos. A memória da convivência excessiva em família para a gente é recente e tem sua dose de tensão e de exasperação. Não acho fácil. Gosto de solidão. Não curto ficar esbarrando o tempo todo com meus filhos e meu marido pelos cômodos.

Pior ainda é precisar manter a casa numa ordem mínima, sem a divinal presença da empregada doméstica, que foi dispensada, temporaria e devidamente remunerada, é claro.

Os três homens Mello são diligentes. As lições americanas ficaram para sempre gravadas no córtex, ao que parece. Contudo, é pesada a lida de limpar, cozinhar, lavar, ajeitar (mesmo que compartilhado), com uma ameaça no cangote a lhe exigir, limpe mais, desinfete, lave as mãos, tire os sapatos, as roupas, não saia de casa, caralho!

E eu gosto de sair de casa, ver as sombras dos prédios, das folhas, os pássaros, as pessoas se exercitando. Sou diurna e o sol me convida, todo matreiro. Além de tudo, tem o tal do home office. Realizar trabalho sistemático, sem a mínima cabeça pra isso.

Brasília, em menos de uma semana, voltou a ser a capital monumental fria sem esquina, sem pessoas nas ruas, sem alma. Mas eu sei que isso é um clichê que usam ainda hoje para desmerecer a cidade. Testemunhei vizinhos improvisando um papo de janela para janela. Alguém colocou a caixa de som na direção do vento e o jazz rolou de um prédio ao outro. O porteiro, também angustiado, morria de tédio: ninguém chega, ninguém sai. Então conversamos por dois minutos blindados pelo blindex.

Retirei todos os anéis para facilitar a limpeza das mãos, reparei que desci sem brincos, os cabelos precisam de tintura e daqui a pouco vou passear com a Frida de roupão ou pijamão, como uma figura esquálida da quadra vizinha, que tem dois cachorrinhos e está sempre de robe no meio do caminho.

Escrevo é há outro panelaço contra Bolsonaro. Ao menos a pandemia serviu para acordar algumas mentes abduzidas por discursos nacionalistas. Vírus não estão nem aí para fronteiras e bandeiras, ricos e pobres. Mas o meu otimismo para por aí. Não creio que as nações e os habitantes do planeta se tornarão menos filhas da puta por causa do perigo real e imediato. Já houve outros momentos-limites na humanidade. Já houve holocausto, gente! Genocídio na Bósnia e agora mesmo, na Síria e na África, sem falar em Miamar. As pessoas seguem a votar em pulhas com pretensões ditatoriais aqui e por aí.

Se você é um workholic e agora está em casa curtindo os filhos, enjoy. Mas, putz, foi preciso um vírus dessa magnitude pra você fazer a coisa certa, meu irmão? Para apreciar a beleza e a importância das amizades e da natureza? Fico passada com as mensagens edificantes estilo a humanidade dessa vez pega no tranco e vai.
Rolo postagens no FB sobre a oportunidade de evolução espiritual que a faca no pescoço proporciona. Pode ser para alguns indivíduos, mas não para a aldeia global. Vencido o horror do fim do mundo, teremos a desigualdade social de sempre. Taí, não queria escrever por causa disso. Sabia que seria azedo. Tô mais pra Coringa do que pra Mary Poppins.

As panelas ecoam pela noite tranquila. Só as motos ainda incomodam, zunindo vez ou outra. Seria bom ser uma pessoa evoluída, imbuída de fé, aquela que apazigua. De todo modo, fiz um carinho na cabeça do meu São Judas, Romulito acendeu incenso e vela, roguei à Santa Bárbara, gravei um vídeo praticando dança do ventre e enviei para a irmã mais velha, a tia e a sogra, e o mais salutar: passei o dia sem ver telejornal ou ler sobre o caos.

O sogro da amiga alemã que mora em Munique está internado com coronavírus. A amiga polonesa que vive em Nova Iorque não sabe como vai pagar o aluguel daqui a dois meses. A amiga italiana assiste, impotente, à tragédia no seu país-natal do outro lado do Atlântico, torcendo para que os pais dela, idosos, não sejam atingidos. Globalização aplicada, primeiro semestre.

Noves fora zero, o que nos salva de morrer em vida são os afetos. Se cuidem!

Comentários

  1. O pior pra mim foi descobrir que não farei mais minha caminhada, não porque tenho que ficar em casa, mas porque com as ruas desertas fico apavorada com a possibilidade de assaltos.

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  2. Belo texto. E os mendigos? Pois é...

    André Luiz Alvez

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  3. Lu, bora tomar um café virtual hora dessas? Li agora sei texto, tão sincero. Agora vou lavar o banheiro, mas bora marcar?

    Clarice Veras

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  4. Eu, por enquanto, tô adorando ficar em casa.
    Mas conviver c o Coringa dentro da mim é difícil mesmo, com ou sem quarentena.
    E viva a nossa família!

    Karla Liparizzi

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  5. Me perguntei isso hoje algumas vezes.
    Encontrei alguns a porta do mercado. Não encontrei resposta

    Catarina França

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  6. Lu, fenomenal!
    Como vc, resolvi não assistir TV. Estou confusa com tanta informação.
    Fique com Deus.
    Bj,

    Tânia Benn

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  7. Melhor de todos os textos.
    Alma revirada, palavras que sangram na verdade.

    Thalynni Lavor

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  8. Ô Lu, sem chance de ver muitas coisas positivas neste momento mesmo. É ainda mais a desigualdade gritante que bate à porta e ela também estará desenhada pela contagem de corpos por aqui. Sem dúvida. A pane global é porque este vírus furou a bolha da necropolítica de costume, mas não nos enganemos que ele terá recorte de classe e racial.
    Sigamos. Podendo manter nosso privilégio do isolamento com casa, cômodos, comida, sol. Sagaz a pergunta de Romulito.
    Beijo em vocês. Se cuidem.

    Marianna Holanda



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  9. Apocalipse zumbi!

    Rodrigo Holanda

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  10. Lu, li nas suas palavras tudo que tenho sentido e pensado nesses últimos dias. A preocupação com esses que estão nas ruas, desassistidos como nunca. As inumeráveis postagens dos otimistas que acreditam na transformação da humanidade pós coronavírus (Agora, vai!).
    Como você, acho que haverá mudança na forma de alguns (talvez muitos) indivíduos tocarem sua vida, mas o coletivo continuará sua caminhada insana rumo a sei lá o quê. Tem um conto budista de que gosto muito. Vou deixar aqui, contado pela Mona Coen:

    "Pergunta - Com o tempo, com o acúmulo de experiências de que a dor acaba passando, começamos a entender isso melhor?
    Monja Coen - Não é preciso um acúmulo de experiências de sofrimento e dor pessoais.
    Buda dizia que os seres humanos podem ser comparados a quatro tipos de cavalos.
    O primeiro cavalo, ao ver a sombra do chicote, galopa.
    Este seria o ser humano que ao ouvir sobre sofrimento e dor de seres desconhecidos, começa a apreciar sua vida.
    O segundo cavalo, precisa ser chicoteado na pele para galopar.
    É a pessoa que precisa sentir a dor ou o sofrimento de alguém conhecido (mas não muito íntimo) para começar a apreciar sua vida.
    O terceiro cavalo precisa ser chicoteado até cortar o pelo e penetrar a carne.
    Alguém que só começa a apreciar a vida depois de perder ou sofrer muito com as dificuldades de alguém muito amado/a ou próxima/o.
    O quarto cavalo só é capaz de galopar quando o chicote o fere até o osso.
    Essas pessoas só conseguem apreciar a existência quando percebem que ela está quase a se acabar.
    Que tipo de cavalo é você? Que tipo de cavalo você pode se tornar?"

    Que bom que você atendeu ao pedido da amiga e escreveu esse texto. Me enxerguei nele.
    Obs.:Também tirei os anéis e, vou lhe dizer, me senti meio nua porque sempre tenho anéis em meus dedos... Seguimos, Lu! Beijo!

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  11. Será se vai surgir um palavrão a altura do que estamos precisando pra se expressar?
    Caralho é pouco. Caralho, tá foda, também não chega nem perto. Puta que pariu!!

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  12. Amei esse texto! O tom azedo conversou com o meu.
    Manda sempre! Força aí pra todos vcs.!

    Renata

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  13. Oi Lu. Muito bom teu texto. Li ontem à noite. Parabéns. Que loucura esse momento. Nunca imaginei passar por isso, ver o mundo desabando em doença, os velhos longe das crianças...
    Voltei anteontem de SP.

    Beijo,

    Ana Cecília Tavares

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  14. Muito sutil, vc tem a medida certa das palavras!

    Eugenia Jardim

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  15. Tempos Estranhos.

    Cynthia Chayb

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  16. Bom dia, querida Lu. Como
    todos os seus textos, tocante. A realidade dessa quarentena , a descrição do Home office, ainda ontem resolvi algo inimaginável por WhatsApp e e-mail. O titular do cartório de registro civil me pedindo para receber a documentação da funerária só por e-mail, faz o óbito, e quando tudo passar, regulariza a documentação. Medo compreensível do contato em um trabalho que também é essencial, lavratura do óbito, que serão muitos.

    Beijos, muita força pra gente.

    Maria Heloísa

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  17. Muito bom, triste e alegre.

    Renata Assumpção

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  18. Lindo e sensível texto, Lu.
    E vamos que vamos, um dia de cada vez.

    Fabíola Rech

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  19. Oi, Lu,
    Gostei muito do que escreveu porque é o sentimento que brota em você nesses poucos dias de isolamento social que todos estamos vivendo. Que doideira, né? Também estou quietinha em casa, estamos todos, na grande maioria.
    Sobre seu texto no blog, não tem porque achar que sairia algo "azedo" você escrever sobre seus sentimentos a respeito da atual situação porque lemos o que o seu coração "pensa" de tudo isso aí.
    Logo, não há o que discordar ou até mesmo concordar com você, nem é por ai, você não escreve para gerar discordâncias ou permissões, escreve porque essa é você, é isso que você gosta de fazer, dentre outras preferências. E é por isso que lemos, porque é autêntico. Simples assim.
    A pandemia realmente nos colocou, nesse pandemônio todo, diante de nós mesmos, saudáveis ou contaminados, paramos para, impositivamente, trancafiados, refletir sobre tudo.
    Você, por exemplo, está assoberbada de trabalho, eu sei, o home office, o serviço doméstico, a família toda em casa, isso mexe com a gente mesmo. Mas, fique firme!
    Quero te enviar um vídeo do Rolando Boldrin, com um conteúdo pra prestar atenção. Mesmo não acreditando "nessas coisas" (você vai ver o que é), assiste. O mundo realmente, não será mais o mesmo.
    E viva a querida Frida que te leva e aos seus para um passeio ao ar livre todos os dias!

    Márcia Romão

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  20. Bom dia Lulupisces,
    Eu tenho um sentimento um pouco diferente. Vejo pessoas se mobilizando pelos desassistidos. Vejo medo também, claro. Desconfiança, será que aquele na rua, no corredor, na portaria, pode estar contaminado? Mas vejo também a fé, a esperança, o desejo de um abraço, um beijo, no ente querido após isso tudo passar, num amigo, no vizinho... Vejo a necessidade de fazer ou dizer algo aqui e agora... amanhã ninguém sabe... Ontem uma senhorinha simpática me abordou, de longe, sobre as botinhas de meu cachorro... E ficou cantando a música Lacinho cor de rosa de Celly Campello. Reconheci a música e fiquei cantando e dançando há alguns metros de distância. Foi tão inusitado e tão incrível! Falei pra senhorinha: que bom humor! Ao que me respondeu: é... precisamos jogar pra cima! Foi o que fizemos... Esses instantes tão mágicos! Valorizemos o que temos e com quem temos e olhemos para os outros com mais compaixão.

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