Sem legendas
Pouso o queixo na gaveta aberta. Aspiro um cheiro inconfundível de ontem: mistura de pós, cremes e couro cabeludo. Um cheiro familiar, minha mãe ou minha madrinha, odor de velhice. Recuo assustada, aquela é a minha gaveta.
Hoje sou mais antiga do que ontem, não tem escapatória. Os sonhos me ajudam a escrever e a recontar a história. Num deles estou em Paris, jovem com cabelos chanel. No outro, vasculho o sótão da velha casa da fazenda... Quando sonho me sinto mais viva na manhã. Convulsionada de ideias forçando passagem em carta psicografada.
Talvez tenha sido a lua negra. A praça que é de guerra transformada em praia numa noite de domingo. Não sei se faço sentido, mas o onírico não necessita de legendas. Só quero reter comigo o céu negro, o barulhinho do pandeiro ali perto e a textura suave dos meus filhos que estavam de volta à minha barriga, apertando minhas costelas num incômodo gravado na memória de toda mulher que carrega a vida dentro de si.
As pessoas deitadas no chão eram reproduções de Klimt, seres amorfos e diluídos sem começo nem fim, entrelaçados, mágicos e coloridos. Nem as baratas voadoras destruíram a atmosfera urgente de celebrar a natureza para esquecer o peso das crises, das corrupções e vilezas... O mundo ficou leve, levíssimo como a singela queda na temperatura que atingiu o espaço; lufada de esperança. Algo me diz que o pensamento geral era: o Brasil poderia ser assim suave, alegre e digno.
Ainda percorro o sótão da casa da fazenda, que não tinha sótão, mas em sonho tudo é reciclável e mutável. Se tivesse cacife para compreender as teorias junguianas diria que esse tipo de incursão inconsciente é um sinal de que é imprescindível conversar com a minha criança. Não a órfã, porém a lúdica. É um alerta para não me desviar do que deve ser essencial.
Aquele momento natural da lua e das pessoas desarmadas me reconduziu aos idealismos mais genuínos. O que é um problema, pois preciso trabalhar. E trabalhar é o inverso do sonho.
Fim, por enquanto.
Lindão, Lu! Fosse uma orelha de livro, convencia-me a lê-lo. Bora, que essa história de trabalho ser o inverso do sonho não me compra, alemã que sou. Trabalho é amor em movimento, energia matriz do desejo de realizar. beijões e marque uma data no seu cronograma onírico para a noite de autógrafos do seu livro. Essa história eu compro! bjitos Bel
ResponderExcluirparabens..texto pra refletir, se entristecer,ter esperança, ..melancólico no momento que nos remete á velhice, que, no meu caso, ja bateu á porta..saudosista,pelas lembranças da infancia, esperançoso, por um país melhor..mas como disse no comentario em seu blog....querendo ou não, trabalhar é preciso...obrigado por lembrar de mim.abçs..vc ja é um sucesso...de público, por enquanto, mas sera de vendas, com certeza.
ResponderExcluirSeverino
Querida Luciana,
ResponderExcluirdevido às minhas limitações, sejam elas físicas (não as fisiológicas, mas as de um físico), e/ou às limitações masculinas, e também às não-artísticas que tenho, nem sempre consigo acompanhar plenamente os seus textos. Eu tento, mas, por vezes, não é possível.
Só algumas observações: "odor de velhice. Recuo assustada, aquela é a minha gaveta. " Entendo do que se trata. Lembro de também, por vezes, sentir esses cheiros na minha tenra infância lá em Caldas, onde havia muitas coisas bem antigas.
"Ainda percorro o sótão da casa da fazenda". Faço isso com frequência. Andando por lugares em que vivi na minha infância. Exploro toda a casa. Vejo detalhes do piso, do teto, das portas.
É maluco!!
Beijo,
Paulo.
Bateu uma melancolia gostosa...um texto que nos remete à uma profunda reflexão...o meu trabalho de hoje foi um sonho que se realizou..."escolhas um trabalho que gostes e não terás que trabalhar um único dia sequer" (Confúcio).
ResponderExcluirNamastê!
Cynthia