Fascinação






“Eu queria morrer sendo eu...”
(Elis Regina)



Conheci Elis Regina aos nove, dez anos. Foi um encontro casual, porém fulminante. Minha irmã mais velha acabara de entrar no mercado de trabalho e adquirira um aparelho de som desses que hoje são peça de museu. O troço era um troço! Muitos botõezinhos, todo preto e dois gravadores de fita-cassete. Ficava guardado a sete chaves dentro do quarto dela. Eu era proibida de chegar perto daquela maravilha, obviamente. 

Mas eu chegava, obviamente. Escondia-me embaixo da cama da minha irmã ciumenta e complicada quando ela saía para trabalhar e ficava presa dentro daquele quarto-santuário só para poder ouvir música. Minha irmã e eu tínhamos um péssimo relacionamento. Vanja nunca se conformou em perder o posto de caçula para uma fedelha tão mais nova do que ela e fazia de tudo para me atazanar, esquecendo-se de que ela tinha 18,19 anos e não três. 

E eu, moleca que só, tentava sobreviver ao bullying ignorando qualquer tentativa dela de me afastar de seus livros, discos e fitas-cassetes. Então, ficava ali dentro do quarto nas minhas manhãs solitárias. E ouvia de tudo. Vivaldi, Bach, Belchior e, num belo dia, Elis Regina. As fitas-cassetes da minha irmã eram bem organizadas e bem gravadas. O namorado de Vanja era músico e lhe presenteava com muitas seleções bacanas. 

No lado A de uma delas estavam “Como nossos pais”, “Velha Roupa Colorida”, “Folhas Secas”, “Dois pra lá dois pra cá”, “As aparências enganam”, “Quero”. Os nomes escritos a lápis com uma letrinha bonita. Que menina de nove anos poderia ser arrebatada por todo aquele drama? Doida de nascimento, só pode. Chorava copiosamente ouvindo aquelas canções e repetia a dose sempre que conseguia me esgueirar no quarto da minha irmã. 

Gostar de Elis Regina aos nove, dez anos talvez tenha moldado toda a minha personalidade/sintonia artística. Não me sinto muito normal desde aquele encontro. Hoje, 30 anos depois, fui conferir “Elis, a musical” e recordei meus dias solitários e melancólicos na companhia da “maior cantora do Brasil”. 

Quando o ator Claudio Lins começou a cantar “As aparências enganam” levei a mão ao peito, pois senti o pulmão fechar. Foi o ponto mais tocante do espetáculo porque eu jamais esperaria que a produção fosse pinçar, do vasto repertório de Elis, justamente aquela canção, a menos conhecida da fita-cassete da minha irmã. Tudo voltou em segundos: meus anos de caçulice sem pai, cercada por irmãos adultos e uma mãe ocupada com a viuvez precoce. 

Naquele momento me dei conta de que Elis Regina fora o meu primeiro ídolo! Conhecia todas aquelas músicas de cor. E também boa parte da história dela. Lembrava-me daquela entrevista derradeira que ela deu e voltou a vontade infantil de ter ido assistir à temporada de “Falso Brilhante” lá no teatro Tuca em São Paulo. Imagina... Uma guria provinciana de Brasília, pobre de marré de si. E sem eles tocarem no assunto, lembrei exatamente o dia da morte dela, nas férias de janeiro de 1982. Dia 19. Tudo ficou tão triste. Eu tinha 11 anos. 

Na adolescência que se avizinhava naquele fim de ditadura, escrevi um poeminha pra Elis. Falso Brilhante foi um dos primeiros CDs que comprei com o meu dinheiro e de lá pra cá, nada mudou:
“eu sou mais louca que a loucura que está solta”*. 

Em comum

Da janela do apartamento, o vento da chuva chega ao meu rosto.
Sinto a fascinação de ouvir esta voz,
De te presentear com meus desvarios.

Sendo consumida por estas canções
 no escuro e escondida.
Aos soluços, feliz da vida.

À viagem vou.
Aterrisso no vazio de Brasília.
Agora compreendo a tua dor.
A crueza de existir frágil, instável e rebelde.

A ansiedade te matou e a mim também.
Somos deliciosamente melancólicas, parecidas.
Umas sentimentais.


*Fala de Elis Regina na última entrevista que concedeu ao programa Jogo da Verdade (ancestral do Roda Viva).


Comentários

  1. Lu... Que lindo! Adoro Elis também mas não tive a felicidade de ter uma irmã um bocado mais velha com ciúmes de suas coisas que me obrigasse a me esgueirar por seu quarto e ficar presa por lá se deliciando com o tesouro escondido... Foi sorte sua esse bullying!!! :) Talvez você não se interessasse tanto, a princípio, se não tivesse sido proibido... kkkk Que lindo seu texto! E o espetáculo deve ter sido maravilhoso... Eu perdi o "time" e não consegui mais ingressos... :(

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  2. Oi Luciana, pouco sei da Elis Regina. Cresci com um irmão que gostava de heavy metal, Mãe que curtia orquestra e pai que ouvia Eric Clapton, Cindy Lauper e Abba.

    Bjs,
    Evelyn

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  3. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  4. Lu,

    Achei que o Blog tinha saído ar, pois não recebi mais nada, nenhuma matéria interessante para desentediar minhas manhãs. Rrrsrsrsrrsrsrs

    Bjs,

    Cris Ornelas

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  5. Fortes emoções, hã!?!

    Valdeir Jr.

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  6. Um toque de proibição certamente deixou Elis mais encantadora. Ótimas memórias!

    Wainer

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  7. Como sempre, seus textos são maravilhosos, despertando emoções, lembranças...e são tantas!!!
    Adoro Elis, suas interpretações brotavam do útero da alma,gostaria miitmuito de ter assistido ao espetáculo...perdi.
    bj
    Namastê!
    Cynthia

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  8. Que maravilha. O mundo gira e mistura tudo. Eu lembro do aparelho de som e das cassetes TDK e BASF.

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