A arte de colecionar o que não está à venda





“O que a gente não lembra não existe.”
(Tomás quase de Aquino)



O que você guardaria na caixinha de estimação que fica na mesinha de cabeceira? Primeiro, é preciso ter caixinha de estimação, certo? E se você não tem, não passa no teste básico de felicidade. Porque toda criança interior precisa de cacarecos colecionados para viver. 

Acompanho a sanha coletora dos meus filhos: pedrinhas diferentes, gravetos, cacos de vidro, bolinhas coloridas dessas máquinas de padaria... Coisa de gente miúda essa vontade de reter o belo, o intrigante, o precioso. 

Aí a gente cresce e faz um limpa na casa e deixa tudo minimalista. Ou mais grave: vira acumulador de roupas, sapatos, vinhos... Objetos de valor por sua grife, essência do vazio. Boçalidades da moda ou outro fetiche qualquer. 

Por isso é fundamental voltar para as tralhas infantis, entende? Você precisa ter uma caixinha de miudezas sentimentais belas, intrigantes e preciosas. Escolha uma caixa, pode ser imaginária. Na minha cabeceira tem uma pequena com estampa antiga da década de 20. Ali repousaram chocolates vindos de Barcelona, presente da filha de uma amiga. 

E a primeiríssima coisa que guardo com carinho dentro dela é a vontade de conhecer Barcelona, é claro. É o meu sangue cigano que me dá ganas de visitar qualquer buraco ou birosca só pelo prazer do ineditismo. Exercitar minha frustração antropológica de sentar e de observar uma praça, pessoas, cantinhos. Depois, escrever mil páginas sobre tudo o que percebi. 

Outro guardado de belezura sem par é o sorriso luminoso colgate de Rômulo. Riqueza que gostaria de reter para sempre. Abrir a tampa e lá encontrar seus dentinhos alvos e o movimento da boca, a gargalhada acontecendo em flagrante! Antídoto para todo azedume. 

A companhia de Tomás nas noites de sofá em frente à televisão também está devidamente embrulhada com papel de seda. O tocar da cabeça dele no meu ombro, delicadezas silenciosas. 

Ouvir uma música que você nem lembrava mais dela também é um achado de valor. 

Os ipês de Brasília, as árvores em geral. O prazer de fotografar e de compartilhar fotos. 

Sorrir de bobeira e chorar de bobeira. 

Dormir uma noite inteira e sonhar sonhos de LSD. Relíquia de mil quilates. 

As mãos de minha mãe com suas manchas e suas pintas de mulher da roça. Quase posso sentir as calosidades... 

A cachoeira da fazenda, sua água gélida e a banheira de espuma natural que fez da minha infância uma festa. A fazenda inteira, na verdade, está dentro da minha caixinha de estimação e não me deixa eu me perder de mim. 

Cavalos e seus galopes e o medo que eu não tinha de galopar. 

Os telefonemas que eu recebia de Bernardo depois das 22 horas vindos do orelhão da praça de Campinas. 

Chocolates Alpino de forminha que mamãe me trazia das suas escapulidas pela rua. Chocolate Feitiço, quadradinho, com sua embalagem vermelha e dourada. 

Meu cunhado chamando minha irmã de jararaca e cascavel numa entonação tão carinhosa que era a própria tradução de grande amor. 

A primeira vez que peguei meus filhos no colo entre sangue, lágrimas, placenta e fúria. 

Ler poemas de gente que sabe o que faz. 

Cruzar com gente que faz suas reclamações parecerem piada. Levar um delicioso tapa com luva de pelica da vida. 

E por aí vai... Agora já dei pra você algumas pistas de como montar uma caixinha de estimação para ninguém botar defeito. Agora vá, ande logo! Mentalize, guarde, acumule emoções bacanas. O resto é lixo! 



Comentários

  1. Isso me fez lembrar do seu alter ego literário: Emília.
    Espivetada, topetuda e sem travas na língua, como você.
    Encantadora, aventureira e irresistível, como você.

    Ela também tinha a sua canastrinha.

    http://lobato.globo.com/misc_canastraemilia.asp

    Desejo que você tenha aventuras e experiências o suficiente pra transformar seu baú num contêiner.

    Primo Valdeir Jr.

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  2. Na minha caixinha imaginária está aquela longa faixa vermelha...
    Quando a vida começa a dar pauladas, é só pegar aquela faixa, amarrar na perna e...
    NÃO SE REPRIMA!

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  3. Maravilhoso!

    Até hoje eu tenho minhas caixinhas com pedras e conchas...tá no sangue!
    Há, e a caixinha virtual, só aumenta todo dia!!

    Abraços,

    Bernardo Neto

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  4. Muito legal...tenho uma caixa de madeira, com muitas recordações, só que não fica no criado mudo,tem de "um tudo".

    Cynthia

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  5. tenho uma caixa igualzinho a essa!!!!!!!! Quando a sala ficar pronta vou achar um lugar pra elas!!!!!

    Marina Caldana

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  6. Que lindeza!
    Fui tomado de assaltos por lembranças aqui. Agora deixa eu organizar um pouquinho essa caixa aberta.
    Obrigado. Beijos!

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  7. que texto fofo, amei :))

    bjs
    Fabs

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  8. Sua imaginação me bota no mundo real; devolve meus pés pro chão.

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