Ensina-me a viver*

“O mundo do cinema tornou-se um lugar melhor depois de Cantando na chuva”**. A frase não é minha, mas quem dera fosse e, afinal, quem pode discordar? Ainda mais quando 2009 está batendo na porta pedindo licença para entrar. Aliás, quando esta coluna for publicada já estaremos no dia 04 de janeiro.

O que eu queria mesmo era escrever um texto do bem, alto astral e carismático nos moldes de Cantando na chuva. Como publicitária de porta de agência acredito em frases feitas e boto fé na primeira impressão é a que fica, no primeiro sutiã a gente não esquece e na química a serviço da vida. Então, estava a fim de trazer um papo legal aos leitores do blog para que todos me amassem assim, logo de cara, e 2009 começasse em paz e transbordante de otimismo.

Entretanto, ao contrário do que define a personalidade do meu signo no horóscopo chinês, eu não fujo de briga. Devo ser uma javali fora dos padrões, pelo menos de acordo com o livro que li ao esperar uma garrafinha de água no café da Livraria Cultura. Alguém antes de mim estava preocupado com o futuro e empilhou 3,4 livros sobre astrologia em cima da mesinha ao lado da poltrona em que me joguei. Pisciana convicta, fui capturada imediatamente pelo tema.

Segundo o livro que comecei a folhear, sou uma javali do metal. Todavia, só consegui me encaixar na frase que dizia “aprecia eventos sociais”. No mais, pareciam estar descrevendo alguém muito mais evoluído do que eu. E a prova disto veio dois dias mais tarde, quando recebi um pedido: “minha filha, você pode me levar ao Comper?” Como negar um favor à sua madrinha quase centenária? Lá fui eu me enfurnar no supermercado em plena manhã de sol de domingo. Contei até 100, pois tolerância não é o meu forte, e embarquei na aventura.

Estávamos indo muito bem, minha madrinha com seu cérebro 100% lúcido lentamente percorria as gôndulas sabendo tudo o que queria comprar e porquê. E eu atrás, de guarda-costas, aprendendo a ter paciência da maneira mais bonita que se pode ter, encarando a fragilidade do ser humano na forma daquela duende de 1 metro e meio de altura.

De repente, um carrinho de supermercado alcança o meu calcanhar de Aquiles. Aquele totó que todo mundo já levou na vida, mas que sempre vai ser extremamente irritante. Olho para trás e uma senhora com cara de afobada me pede desculpas. Relevo, claro. Shit happens, acidentes, nem se fala. Além disso, estamos entre o Natal e o Ano-Novo. Não vou virar Israel e bombardear a Faixa de Gaza em dias tão cósmicos assim. Seria pura calhordice e XXXX (pense no palavrão mais feio que você possa usar para depreciar algo totalmente vil e asqueroso).

Dindinha pára na banca de abacaxis e começa a escolher qual levar com a lentidão que seu corpo antigo obriga. Eu aviso que vou ali, no corredor das papinhas de bebê, e já retorno. Quando volto, três minutos depois, assisto à mesma senhora afobada, loira de farmácia, retirando minha madrinha do caminho como se ela fosse uma caixa que estivesse atrapalhando a passagem.

Aproximo-me e pergunto: o que está acontecendo aqui? Ela se assusta, ave de rapina que esperou o momento certo para dar o bote na presa frágil e indefesa, e tenta arranjar desculpas para o indesculpável: “Eu só estava chegando ela pra lá porque ela é muito devagar, não anda e...” E o que minha senhora? (Eu alertei que não era uma javali convencional). Eu não sei se a senhora notou, mas essa dama aqui tem 94 anos. Um pouco de respeito e educação seriam bem-vindos. “Mas então pra quê trazer alguém dessa idade para fazer compras?”

Sim, ela teve coragem de falar uma atrocidade destas como se já não bastasse o constrangimento da velhice por si só, que tolhe a fluidez da pessoa num corpo duro quando seu cérebro ainda é tão ágil e vigoroso. Esta senhora tem todo o direito de vir ao supermercado assim como você (já não dava mais para tratá-la como deveria). Ela também paga impostos, ela também é dona-de-casa, ela também tem inteligência, discernimento e capacidade de escolher suas próprias frutas e legumes. Você é muito mal-educada, uma grossa e vamos parar por aqui porque não tenho mais nada para discutir com alguém sem um pingo de civilidade, disparei o míssil (podia ter sido pior, mas em consideração à minha madrinha, não detonei a bomba-atômica de impropérios).

Uma pequena multidão já nos cercava e olhava feio para a senhora que, impressionantemente, também já havia passado dos 50 com certeza. Ou seja, ela vai estar na situação da minha madrinha em breve. E eu quero que um filho dela ou um neto a proíba de ir ao supermercado para não dar vexame com a sua lentidão. Se bem que se ela for do mal, Darth Vader, provavelmente não receberá a graça de chegar à idade da velha Jandyra, sábia e cheia de dignidade.

Pois é, leitores, eu queria começar 2009 sem destilar veneno, nem Antrax, mas senti que era por uma boa causa. É melhor produzir um certo impacto ao entrar em cena do que ser vítima da indiferença (mais uma frase de efeito de uma mente publicitária brilhante).

E agora que já fiz minha entrada triunfal de pé esquerdo no Ano-Novo - porque sou canhota e não entendo este preconceito com os contrários - eu vou voltar para o meu presente de Natal preferido da semana: 1001 filmes para ver antes de morrer. Tratado do bom cinema de todas as nacionalidades. E para nós brasileiros, um drama romântico delicioso e inesquecível com pitadas de musical e comédia no decorrer das próximas longas horas no escurinho da vida.

FELIZ 2009!

* Título em português do filme Harold and Maude. Lançado no ano em que nasci, 1971, desafiou tabus de idade, envelhecimento, sexo, morte e felicidade por meio de um par romântico improvável: uma idosa cheia de vida e um jovem rapaz entediado.

** comentário extraído do livro 1001 filmes para ver antes de morrer”.

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