“Vamos bater palmas para a alma do Tom”*

Há umas semanas na vida da gente que são tão musicais...E o melhor de tudo: elas não estão em nenhum cronograma, portanto não podem ser esperadas ou puladas, como aquela consulta do médico que você resolve não ir de última hora. Quando essas semanas musicais acontecem, elas  simplesmente acontecem. A gente só se dá conta a partir do momento em que conta os vários momentos felizes que foram gatilhados por uma canção ao longo de sete dias.

Assim aconteceu comigo: começou ao pinçar um cd ao acaso naquele emaranhado de  caixinhas transparentes que você tenta manter em ordem alfabética, de gênero musical, de vozes femininas ou masculinas, mas que não dura muito tempo. De repente, a organização dá espaço ao caos e Elis Regina está do lado da trilha sonora do filme Forrest Gump.

A falta de ordem não lhe permite achar aquela música que você quer ouvir agora, mas, por outro lado, lhe propicia o tal “fator-supresa” que tanto faz bem ao cérebro. Você pode fechar os olhos e pegar qualquer um. Todos serão bons. Afinal, foi você mesma quem comprou a sua coleção, não? Bem, se a do seu marido/namorado/irmão estiver junto e ele gostar de sertaneja enquanto você tem aversão, as coisas podem ficar feias...
Mas não foi o meu caso e pincei “The Joshua Tree”, do U2. Fazia um tempinho que não ouvia este cd no carro e foi muito bom. O que deve passar na cabeça de pessoas que fazem uma obra-prima além do orgulho incomparável? Caramba, todas as músicas deste disco são lindas, perfeitas, evocativas de tantas memórias importantes dos meus tempos de UnB. Os caras acertaram 100%. Quando é que a gente consegue acertar 100% em algo e ser reconhecido por isso? Na minha vidinha obscura, ainda não chegou esse dia, mas se chegar eu quero estar viva. Não terá graça se eu já tiver perdido a esperança.

Joshua...Se fosse inglesa ou norte-americana este seria o nome do meu filho. Então o U2 já começou com o pé direito ao batizar o “filho”. Comecei a viajar, voltando a fita às aulas de Estética e Cultura de Massas. Na disciplina de alcunha pedante até dizer chega, o caro professor José Luiz Braga nos pediu para fazer um trabalho: analisar capas de discos. Entender a simbologia,  os mecanismos de comunicação aparentes e subjacentes contidos na arte de uma capa de um LP. O então recém-amigo Mário escolheu exatamente “The Joshua Tree”. E fez um puto ensaio. Arrebentou. E eu me lembrei de como fomos ficando mais próximos ele, Má e eu. Depois de disso, eles se casaram  e eu fui a madrinha de casamento.

Música serve pra recordar e se aninhar nos momentos doces que vivemos. Música dá jeito no ranço da mesmice, acostumando nosso olhar e ouvido ao novo, ao inesperado. Também aconteceu comigo. Minha sobrinha me convidou para conferir o show do Hermeto Paschoal na última quinta no Clube do Choro. Fui. Deixei minha casa semi-morta, arrasada de cansaço. Mas topei o desafio.

O presente foi todo meu. Hermeto é lenda, encantado, uma clave de sol. Acho que está no time do curupira, mas que a gente pode enxergar. Não precisa ter sexto sentido ou ser vidente. É só abrir o coração. O homem e sua cabeleira branca, seus olhos miúdos e vesgos, transborda lirismo. É arretado na ousadia. É glorioso na simpatia. Uma apresentação memorável. Lindo foi ouvir a nova geração de instrumentistas ser abençoada pelo mago Hermeto. Mestre e aprendizes em total sintonia no palco. A certeza de que a boa música brasileira vai ter sempre o seu espaço entre um axé e outro. 

E no compasso da semana musical, após tirar sangue (ninguém merece ser espetado numa manhã de sol de sexta-feira), eu ouço “Jorge da Capadócia” no rádio do carro. Bem naquela fração de  segundo em que  estava de olho no lago Paranoá. Salve Jorge! Na vozinha carioca suinguesanguebom (percebam a coincidência vermelha) de Fernanda Abreu, pedi proteção ao santo guerreiro cantando a plenos pulmões: “eu estou vestida com as armas de Jorge para que os meus inimigos tenham pés e não me alcancem. Para que os meus inimigos tenham mãos, mas não me toquem”. Aleluia! Saravá! Namastê!

Música para exorcizar os males e os humores negros e para buscar o deus das pequenas coisas que a gente esquece, deixa no canto, juntando poeira. Chego na confraternização da fisioterapia e sou recebida pelos acordes de um violão. As vozes cantam “e ainda se vier noite traiçoeira e a cruz pesar demais Cristo estará contigo. O mundo pode até fazer você chorar, mas Deus te quer sorrindo”. Me arrepio. Eu adoro esta música. Canções de igreja mexem comigo, pois são a cara da infância de domingos e dias santos compartilhados nas missas com a minha madrinha, uma negra que canta bonito e tem fé inabalável em São Judas Tadeu.

Não curto padre Marcelo, mas ele também acertou neste refrão, que é danado de tocante. Música é tudo: milhões de possibilidades, histórias cantarolantes sem fim.
           
* Pedido feito por Hermeto Paschoal à platéia que lotou o Clube do Choro para reverencia-lo.

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