REgozijo





REler um livro que lhe marcou em fase diferente da vida pode ser cilada ou REdescoberta. Perceber que aquela história que deixou sua alma em polvorosa envelheceu como você: frustrante. REencontrar as frases e os parágrafos que você sublinhou: excitante.

Há um conflito entre culpa e desejo ao REabrir livros (eis porque são fixações e objetos lascivos), quando existem tantas obras à espera de um primeiro olhar. 

Mas em momentos de caos generalizado lá fora, buscamos o conforto das boas sensações internas. REtornar a um porto-seguro garante um pouco de estabilidade emocional.

Todavia, rola o perigo da decepção que, ainda bem, não experimentei. Também, quem se desiludiria com Ana Karenina, com Cem Anos de Solidão e com Grande Sertão: Veredas? Só os que tentaram e não se identificaram. Aquele lance do santo não bater.

Porque não acho mesmo que a pessoa tenha a obrigação de gostar dos clássicos ou dos novos clássicos. Leitura é algo pessoal e intransferível. Entretanto, às vezes você antipatiza com um livro numa época e, passados alguns anos, tudo pode ser diferente. Daí o tesão de REviver um livro: vai REencantar?

Agora estou imersa na REleitura de “Senhorita Smilla e o Sentido da Neve”. Livro que virou um filme ruim, assim como “A Casa dos Espíritos”, que terminei durante a pandemia. Esse último não me provocou a mesma hipnose vivenciada na adolescência. Mas nessa idade a gente se deixa impressionar além do que é preciso. Sem contar que toda a parte relativa ao golpe militar foi muito dura de REvisitar. Hoje compreendo que estamos mais perto da extrema direita do que aos 15, 16 anos, na flor da redemocratização.

De todo modo, Clara continua sendo uma das personagens mais inebriantes da literatura mundial. Na releitura, percebi o quanto a saga perdeu com a morte dela no meio da narrativa (spoiler, sorry). Não sei porquê Isabel Allende decidiu tirá-la de cena tão rápido. REsta um vazio de sua presença sobrenatural. 

Depois de épico dessa monta, precisava de outro livro potente: veio “Sobre os Ossos dos Mortos”, que deu à escritora polonesa Olga Tokarczuk o nobel de literatura. E por causa dele, me deu vontade de REaver Senhorita Smilla, pois numa associação de personagens e de temáticas, creio que a obra de Olga bebeu de Smilla e da “A Elegância do Ouriço”, romance que RElembrarei mais tarde, tenho certeza.

Tô me amarrando em REencontrar as passagens que grifei na escrita do dinamarquês Peter Hoeg. Smilla é uma delícia e, nos meus 20 e poucos anos, sem filhos, me REparo mais preocupada com ataques de melancolia do que com a vida real (emprestar um livro pode REvelar muito da sua própria alma, cuidado!). Por que raios achei esta parte importante e não essa outra, muito mais interessante?

Existe, também, aquela REativação da memória da compra do livro. No caso desse - assim como em muitos outros - foi pela beleza do título. Publicitários valorizam a importância de um nome de impacto. E o selinho amarelado da livraria Belas Artes de São Paulo? Tesouro! Sou militante de livrarias. Nada contra os kindles. Porém, estantes repletas de lombadas são templos que devem ser tombados pelo patrimônio imaterial das civilizações.

Percebi que foram as geleiras da Groenlândia, tão bem decantadas por Smilla, que me tornaram eterna apaixonada pelas paisagens geladas. Muito antes de conhecer a neve já a amava devido à novela dinamarquesa.

De lá para cá, sinto-me cada dia mais nórdica. Coisa doida, admito, contudo, insisto: nada como REenamorar-se por uma história dez, vinte anos mais tarde. REcomendo.





Comentários

  1. Lista excelente de livros a ser lida. Obrigado Lu.

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  2. Muito bem dito!

    Maria Félix Fontele

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  3. Seu belo texto me fez sentir vontade de reler alguns livros. Eu tenho uma lista já grande de livros que li duas vezes ou mais, até postei aqui no Face. Mas alguns merecem uma nova leitura, tipo "O amor nos tempos de cólera, A sociedade dos poetas mortos, Quincas Borba e On the Road. Apenas discordo de você em dois pontos: Achei o filme "A casa dos espíritos" excelente, quase à altura do livro magnífico da Isabel Allende, e o Kindle me conquistou de vez, claro que faz falta o cheiro da tinta, a delícia de rasgar e rabiscar as páginas, mas é muito prazeroso, confortável, ideal para quem já anda com as vistas cansadas como é o meu caso.

    André Luiz Alvez

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  4. Concordo com tudo que disse, não li esse livro que está relendo.

    Renata Assumpção

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  5. Que texto mais delicioso, de comer! Ontem andei com A casa dos espíritos na mão!!!! E que engraçado isso de se sentir culpada por REler, quando existem trocentos títulos novos para ler...
    Adorei!

    Ana Cristina de Aguiar

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  6. Amei!!! Rever o que nos impactou, perceber os caminhos da vida tanto tempo depois...

    Bianca Duqueviz

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  7. Ameiiiiii
    Às vezes não leio de imediato porque a cabeça fica tão diferente nesta pandemia...
    Não lembrava que Clara tinha sumido cedo demais da história, mas lembro de um branco mesmo....
    Já leu Paula?
    Acho que nunca li um livro tão bom. Em 2 tempos diferentes e Isabel mostra toda a sua arte ao mudar de um para outro...
    Muito bom o q vc escreveu, Lu. Depois vou ler os outros.
    A cabeça fica em busca de encontrar afeto, amigos além das notícias...e a casa com seu infinito trabalho, o cravo que me espera e eu só olho...

    Ana Cecília Tavares

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  8. Também entrei nessa onda. Lembra, não? Reli um Lawrence Block e três Rubem Fonseca. Se botar na lista os filmes que revi, a lista aumenta.

    Valdeir Jr.

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  9. Também sinto isso. Quando releio um livro tanto tempo depois, me vem à memória a pessoa que eu era. Engraçado que filmes não tenho vontade de assistir novamente. Livros, sim. Os poucos que sobraram, é claro. Aqui em casa não cabe nada. E os seus próprios textos, você relê?

    Karla Liparizzi

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