Pedra fundamental





Com gente que tem filho acontece o seguinte: você tem uma vida A.F. e outra D.F.. Você mede o seu tempo na esfera terrestre - ou na távola redonda, a depender do seus grupos de zap - a partir dessa linha de acontecimentos e se torna um pouco dicotômico aos olhos de quem não povoou o mundo com descendentes. 

Você parece ter vivido duas existências completamente díspares. Quem não tem cria não saca esse antes e esse depois, apesar de ser um fato intransponível como são os próprios filhos.

Para quem esperou pra lá de 30 para iniciar a carreira materno-paterna, há muita história before e after aquela foda que mudaria tudo para todo o sempre.

Tenho amigos descolados e despreocupados que se irritam um pouco quando digo (com mais frequência do que gostaria): “mas isso aconteceu numa encarnação anterior, antes dos filhos”. Eles acham que estou dramatizando, pagando de velha sábia ou tola. Ambas, ao captar a cara de tédio indisfarçável ao redor. 

Porém a parada é inevitável. Tanta coisa importante fiz antes da maternidade. Primeiro beijo na boca, primeira transa confusa num motel. Primeira prova do Detran, segunda.

Passei na UnB, formei, casei, morei em São Paulo e Nova Iorque, testemunhei as Torres Gêmeas implodirem à minha frente, ao vivo e com muita fumaça e desespero. 

Amarguei desemprego, desilusão profissional, passei em concurso público, algo que sempre objetei. Fui à Paris só para chorar a destruição da Notre Dame com mais propriedade 20 anos depois. Olhaí ele, o advérbio definidor. 

Fiz curso de datilografia e participei da criação do site do STJ.

Fui de carro até Buenos Aires. Tinha secretária eletrônica onde gravava recados chamados “poema da semana”. Comprei meu primeiro apartamento no terceiro andar de escada. Perdi meu cunhado mais amado num acidente de carro obscuro. 

Li Grande Sertão, Veredas - uma guinada de paradigma literário - e Guerra e Paz (jamais poderia terminar mil páginas em poucas semanas se filhos tivesse). 

Era menos insone e mais magra. Tive cabelão até a cintura, cortei e deixei crescer de novo e de novo e de novo. 

Ia ao cinema toda a semana, sem perder os lançamentos mais esperados. Fiz cirurgia para me livrar da miopia que não quis se livrar de mim.

Tenho 33 anos de memórias pré-gravidez e 15 após. O antes ainda ganha de lavada, todavia filhos são uma inundação de afazeres, memórias e aprendizados que nos fazem abandonar a bagagem adquirida para se manter de pé na correnteza com alguma sanidade. 

Portanto, esse lance de profetizar: “vou fazer isso agora porque quando tiver filho não faço mais” é verdadeiro para o bem e para o mal do que pode estar contido nessa profecia. 

Não há mais tempo para o que não pode dar certo. A missão é criar filhos legais para um mundo que quer que eles e você se fodam. Você abraça a causa e vai.

Sim, amiga que está tentando engravidar ou que já está grávida ou que adotou, preciso lhe avisar que você vai “mudar tanto assim”, sim. Mesmo que não descubra que tudo o que você queria da vida era ser mãe e não sabia. Há mulheres que se revelam na maternidade: abrem mão de si e se entregam à vocação: “meu reino por um grito estridente: mamãeeeê!” Eu não sou desse time, tampouco sou o que me definia nos 33 anos A.F.. 

Daí sigo escorregando no cacoete: “ah, mais isso foi antes de ter filhos”. Entretanto, venho evoluindo para outra muleta discursiva mais interessante: “ah, mas isso foi quando Tomás fez isso ou aquilo ou “ah, lembro bem, foi no dia que Rômulo inventou isso ou aquilo”.

Amigos descolados e despreocupados, peço desculpas pela insistência desse marco histórico-filial. Ninguém é perfeito, muito menos as mães.  


Comentários

  1. Maravilhoso!
    Compartilhei seu texto c minha amiga q tá calculando milimetricamente quando ter filhos...e Já quero ir de carro p Buenos Aires. kkkk!
    Por isso q vc tem coisa p lembrar de antes dos filhos. kkk!
    Eu concordo que a vida é outra c filhos, mas os relatos q tenho escutado ultimamente são de mt pesar, de uma vida de limitações.
    Acho q é uma vida nova, com desafios e novos sabores. E é uma vida boa!

    Andreya

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  2. Acredito piamente e sigo querendo. :)

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  3. Muito real seu post Lu!!!

    Mariana Mataluna

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  4. Maravilha, é isso mesmo! Adorei o texto.

    Cynthia Chayb

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  5. Lula´s, filho é amor próprio!

    Catarina França

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  6. Que texto divertido!
    Bem por aí mesmo
    Agora espero a fase pós filhos em casa ou com filhos fora de casa.

    Carmem Cecília

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  7. Vida Real e se reclamar a gente posta de novo. Oras! rsrsrsrs

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  8. Que texto sensacional. Me representa, inclusive no quesito outra encarnação rsrsrs, fui mãe aos 19 anos e depois aos 25 anos...mas foi bom!

    Anna Luíza

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  9. Excelente, filhos são divisores de água, seja como for a experiência. Rio por dentro quando ouço mestres da criação de filhos sem filhos. Claro, todos têm direito a sua opinião, não se trata disso, trata-se de que só sabe quem tem, e quem não tem não vai acreditar nisso rsss. Grande paradoxo. Mas a gente também já foi assim, A.F. Ótimo, amiga!

    Marisa Reis

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  10. Obrigada Lu!
    Que texto!

    Juliana Cruz

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  11. Gostei da conta A.F. versus D.F. - nunca tinha colocado a matemática desta perspectiva. E é bem bom pensar que tive mais vida sem ser mãe. Por aqui, 24 a 13.

    Marianna Holanda

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  12. Lu, vc adivinhou meu pensamento nesse ultimo mês!
    Minha vida igualzinha a sua - curso de datilografia Remington, vc tb?

    Elisabeth Ratz

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  13. enho aquela sensação, que as coisas aconteceram antes dos filhos, mas no meu caso, precisamente, antes do casamento.

    Fiz duas pos...
    Dois cursos de cinema...
    Três preparatórios para concurso na área de comunicação.

    Nenhuma viagem só, nenhuma noitada. Como vê, só responsabilidade...
    muita viagem em família, restaurante e academia...
    Zero amantes... KKKKKK!
    Tudo isso depois...
    Antes...
    Viajei EUA, Bolívia, Argentina, etc...
    Trabalho e estudo da mesma forma...

    Catarina França

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  14. Sensacional!!!!!!!! Lacrou mais uma vez! #maternidadereal
    Da sua fã número 1:

    Anna Gabis

    Está chegando o dia do lançamento do livro! Não perco por nadaaaaaaaaa!

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  15. Ah, claro que ser mãe nos dá uma bagagem incrível! Tira você (mãe) do seu universo umbilical e te apresenta um outro mais amplo, desafiador e real. É isso. Nossos filhos nos desmascaram, mostram ao mundo quem somos e nos impelem à transformação. É bom ser sacudida por pessoas tão suas. Não! Do mundo! kkkkkkkk Beijos, miga

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  16. Um texto pra quem quer ter filhos. Um texto pra que já os tem.
    Ufa-lá-lá!
    Amei.
    Obrigada por expor parte das almas aflitas pela maternidade...hahahaha!
    E viva a maternidade!

    Juliana Tavares

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  17. Muito bom a forma de como vc descreve essa bagagem de ser mãe moderna!

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  18. Lu, maravilhoso seu texto, aliás como de praxe!!! Você nos dá presentes cada vez que escreve, esse vem cheio de nostalgia, o A.F. tem uma leveza que fica para trás, definitivamente.

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  19. Poxa Lu não tinha lido esse texto é bem isso mesmo. Aqui já estou no 28 X30 e posso te dizer que ainda me consome muito essa tal maternidade.

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