Enigmas estelares






“Continuava de pé e aparentemente sereno,
embora dentro de si sentisse um nervoso miudinho a subir-lhe pelo peito acima”.

(Miguel Souza Tavares)


A cada novo e-mail ou áudio de whatsapp encaminhados pela editora do livro, um frêmito de pavor me invade. E quando uso a palavra frêmito, faço reverência ao amado Quintana, rei dos arrepios poéticos. 

Pois, sim, chegam as notícias instantâneas e eu me dou ao desfrute de prolongar o suspense. Não abro de imediato. Deixo marinar por horas até. A proposta é saborear cada atualização do processo de parir um livro com a angústia diante do desconhecido que me cabe. Encaro o decurso de tempo como se gestasse um elefante. Adoro-os: pacientes e amigáveis.

Porém, tenho medo de que algo dê errado e a publicação não mais ocorra como previsto. Simultaneamente, tenho prazer em perceber que o copo meio vazio que me habita quase sempre é injustificado; traumas que emergem da caixinha reptiliana das lembranças ruins.

As mensagens vindas do Rio de Janeiro são alvissareiras. Tudo nos conformes. 

Quantas sensações a vida nos apresenta diariamente. Às vezes, de forma intencional. Noutras, provocadas pelas circunstâncias. 

O marido retorna da viagem a trabalho e traz uma dúzia de Alpinos em forminhas douradas. Me ponho alegre e triste porque o gesto é idêntico ao que mamãe fazia: compensar a ausência com a doçura do chocolate. Foram anos a repetir o exato mecanismo de recompensa. Código tácito entre nós duas que me transformou em uma viciada pelo conforto sentimental instantâneo do cacau ao leite.

No banho, se quero me lembrar do lindo verão de 2017, no Canadá, uso, com parcimônia, o sabonete líquido que trouxe de lá. Retardo, ao máximo, o fim da embalagem. É divertido reviver a casa da Eugênia. Para sempre a fragrância contendo "Swiss botanicals" (misterioso, não?) estará conectada ao sobrado acolhedor.

Por outro lado, passei anos sem suportar o cheiro do sabonete Dolve, pois me revivia a angústia das visitas rápidas à cidade de Campinas/SP, onde Bernardo fazia seu mestrado. O amigo com quem ele dividia o apê tinha mania de Dolve. O odor passou a representar sofrimento, pois separação de jovens apaixonados é um drama excruciante. Só um coração de 20 anos é capaz de aguentar tamanha chateação. 

Ah, o revolvimento dos cadernos probatórios da alma. Lufadas a embaralhar nossas reminiscências ternas ou terríveis. Se “Rapte-me, Camaleoa” toca na rádio, flashback surpreendente, volto para o quarto do amigo Cacau e à intensa cumplicidade entre quatro paredes daquela adolescência. Mas, vai ver que a música que desperta nele forte comoção sobre nós seja outra. 

Eis o instigante nesses sentimentos atiçados por cheiros, sons, palavras e cenários: cada pessoa guarda o que lhe é inconscientemente mais profundo, pela dor ou pela magia. Comprovo a tese aplicada ao casamento. Quando ele recorda alguma viagem da gente, geralmente traz à tona situação diversa da que foi significativa para mim. Existem lembranças dele que simplesmente não vivi e vice-versa, ainda que estivéssemos o tempo todo juntos. 

Entretanto, o que dizer do filho caçula que é fã do grupo Dire Straits assim como o meu irmão mais velho foi? Detalhe: o tio não conhece o sobrinho. Nós, os pais, curtimos a banda, mas nada em especial. Haverá, nesse caso, uma memória coletiva familiar, mesmo que não expressa? Emoções humanas: enigma, constelações.

"Cada um de nós é um universo, Pedro".
(Raul Seixas)



Comentários

  1. Lu, eu tenho certeza que dará tudo certo com o seu livro! Concordo com Raul, acho que cada ser humano é um universo ímpar. Bjs.

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  2. Minha querida escritora...agora é só correr pro abraço...tudo certo...ansiosa pra chegar a hora!

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  3. Depois de anos lendo suas crônicas estou notando que você está se tornando uma romântica, sua sensibilidade está mais aguçada, sua rebeldia mais controlada, Não sei se gosta ou não dessa perda, mas seus textos continuam belos, será que está chegando nos 50 e isso nos transforma? Adorei.

    Renata Assumpção

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  4. Ansiosa por seus belos escritos devidamente dispostos em capa e papel, como um lindo relicário. Parabéns, xará querida!

    Luciana Barreto

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  5. Consegui ler seu texto super feminino, Lu.
    Pra mim tem a hora límbica do dia, de 14h30 às 15h30 - com dia ensolarado aqui no bairro me remete de porrada ao primário, em casa depois do almoço, hora de enrolar pra fazer tarefa e ficar na janela mexendo com os cachorros boxers da vizinha Dona Didi...

    Elisabeth Ratz

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