Casulo






Descubro que Harry Potter já é pai e o rebento (rebelde) se chama Albus. Fazia tempo que não lia para os meninos deitada ao lado deles, antes de dormir. Me enfiei debaixo do edredom naquele casulo quentinho e peguei o livro das mãos de Rômulo: (...)”the cursed child”. 

Não me faço de rogada e recito inglês em voz alta, sempre à espera de que o guri corrija minha pronúncia deficiente. Ele não o faz, sei lá porquê. Talvez esteja mais interessado no calor humano da mãe, na voz da mãe. Sensações viscerais, ancestrais. Afinal, não foi assim desde o ventre? 

O cheiro do garoto ainda é morno, suave e infantil. São os últimos momentos para me enebriar nessa fragrância única de filhote. O irmão com quem compartilha o quarto é sobrenaturalmente bonito, entretanto já exala hormônios adolescentes. Todavia, ele também não abre mão do boa noite todas as noites regado a “eu te amo” como parte do ritual. 

De repente, me lembro que Rômulo demorou muito a "aprender" a dormir. Trabalhoso, custoso, tão diferente do primogênito dotado com todos os genes do bom comportamento. A mãe era a única que conseguia domar o menino já com mais de um ano e tanto. Vencia o estado de alerta dele cantando, lendo, bronqueando e, principalmente, por meio de um abraço de urso, na verdade mais para um ippon, capaz de cessar os movimentos frenéticos de seus braços e pernas. Desligar aquele motor era tarefa extenuante. Rotina da qual não nutro saudade. 

Mas ler para os meninos sempre curti. Aliás, sempre gostei de ler em voz alta para uma plateia disposta a me escutar (haja ascendência em Leão!). Fazia essas recitações desde criança para as outras meninas do orfanato que costumava visitar levada pela madrinha. Era uma atividade prazerosa, poderosa. Por isso, quando o cansaço não enevoa as obrigações com sua cantilena exaustiva, clareio a inércia e aproveito. Por ser a chance de resgatar a conexão subjacente. Aquele instante que era só da gente na penumbra do quarto.

Os corpos colados debaixo das cobertas no apartamento mais frio do que a rua. Nem a troca das esquadrias de ferro por alumínio super vedantes roubou dos cômodos a queda da temperatura nas noites de outono-inverno. Até gosto bastante disso. E da memória dos pijaminhas de flanela dos dois, as pantufinhas coloridas. 

Há dezenas de fotos da família como se vivesse no hemisfério norte muito antes de ter vivido lá. Parece inacreditável, porém, antes da reforma, houve uma fase na qual utilizávamos um aquecedor elétrico para que os meninos pequenos não adoecessem devido às madrugadas geladas. 

Agora, Tomás já não tem pijamas fofos. Romulito, uns remanescentes. Daqui a pouco, babau: nada de delicadezas! Apenas espinhas, pentelhos, chulé, cecê, troca de voz e cabelos desgrenhados dia, sim; noutro, com certeza! Ao menos voltei para as aulas de balé. Em casa de testosterona, carece endurecer, pero sem perder a ternura jamais! 


* Ilustração de Isabel Frantz inspirada num poema de Lya Luft

Comentários

  1. Relaxa. Daqui a pouco vem os netos.

    Valdeir, o Junior.

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  2. É isso amiga... exatamente assim🤗

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  3. Faltam-me elogios do quão prazeroso e inebriantes são seus textos! Senti-me ali com os.meus- quando ainda deixavam!!!!!! Agora estou só no chule e outros azedumes. Entretanto, quase visualizo uma fagulha de esperança quando falam: "Mamãe, te amo!", quase vejo aquelas crianças de um tempo que nao volta mais.!!!
    Sua fã n. 1!
    Gabriella.Santana

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    1. Sua gentileza me comove, querida Branca de Neve! Grata sempre por seu carinho e apoio incondicionais!!!!

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  4. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻❤️❤️❤️❤️

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  5. Danada de escritora!! Me vi debaixo do edredom!

    Ambrosina

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  6. Gostei!! Mime muito mesmo!

    Leila Brandão

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  7. Luciana,
    muito legal.

    "O cheiro do garoto ainda é morno, suave e infantil. São os últimos momentos para me enebriar nessa fragrância única de filhote. O irmão com quem compartilha o quarto é sobrenaturalmente bonito, entretanto já exala hormônios adolescentes. Todavia, ele também não abre mão do boa noite todas as noites regado a “eu te amo” como parte do ritual"

    - O cheiro dos filhos, é sim, sempre muito bom.

    "Daqui a pouco, babau: nada de delicadezas! Apenas espinhas, pentelhos, chulé, cecê, troca de voz e cabelos desgrenhados dia, sim; noutro, com certeza! Ao menos voltei para as aulas de balé. Em casa de testosterona, carece endurecer, pero sem perder a ternura jamais!"

    - É! Essa é uma diferença grande entre meninos e meninas. A transição para a vida adulta é um pouco menos drástica.

    Vou ter que aprender a conviver com a idéia da minha menininha sendo agarrada por meninos ferozes... Mas, por outro lado, sempre vou ter a doçura dela.

    Ela também ainda faz questão de vir nos dar um beijo de boa-noite antes de dormir.
    Ai-ai...

    Um abraço pra o Bernardo.
    Um beijo pra você.

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  8. Legal, Lu!
    Outro dia li, já não me lembro onde, que ler em voz alta para os filhos é muito bom. A voz dos pais transmite muitas coisas além do conteúdo lido.

    Beijos,

    Isa Frantz

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  9. Adorei, Lu! Que delícia de texto!!!!

    Renata Assumpção Queiroz

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