Frida, mas poderia ser Clarice

Fui imune ao amor canino pela metade da vida (se levarmos em consideração que a vida começa aos 40). Talvez por ter crescido numa fazenda rodeada de animais de grande porte: vacas, touros, cavalos, mulas, onças pintadas das quais só vi pegadas; lobo-guarás aguardados, em vão, todas as noites... 

Os cachorros, galinhas, gatos, patos, pintinhos e porcos eram triviais demais para mim. Eu queria os tatus furtivos; as cobras enigmáticas; as mariposas funestas e as corujas, ah, as corujas soberanas. 

Quem sabe também os cães tenham sido associados à onipresença da irmã que sempre me rejeitou. Provavelmente projetei nos bichinhos a recusa daquela moça ciumenta e imatura que não soube se desapegar do posto de caçula. 

Seja como for, passei décadas convivendo lado a lado com cadelas e cachorrinhos de vários tamanhos, raças e vira-latices sem lhes dar a menor pelota. Refratária aos seus olhinhos lânguidos e sorrisos, cheguei à maturidade. E na maturidade, vencendo meu nojinho e meu transtorno obsessivo-compulsivo por limpeza e ordem (patologia endógena nas mulheres da família Militão), abri as portas e o coração para receber um ser de quatro patas no meu lar. 

Não vou dizer que é fácil. Que não sofro com os pelos espalhados pelo belo assoalho de taco cumaru. Com a sujeira de patas no tapete da suíte, caso a gente esqueça a porta do box aberta após o banho (Frida cisma em beber água do chão do banheiro, vá entender a neurose de cada um). A bagunça diária da área de serviço etc., etc., etc. 

Tenho de respirar fundo, fazer uma meditação express, olhar para o teto (o teto ainda não tem pelos e pegadas). Preciso abdicar do meu nariz sensível ao odor característico dos canídeos, mesmo sendo Frida uma lady das mais elegantes. Desafios dessa nova rotina que, de fato, vale a pena. 

Agora entendo porque os terapeutas e psiquiatras deveriam receitar um cachorro aos que sofrem de depressão: eles prolongam a sessão de terapia para o ambiente doméstico. Você pode passar a tarde inteira conversando com eles, que ouvirão suas lamúrias com atenção, paciência e empatia, com ênfase nessa última - às vezes mais sincera do que do próprio psicólogo - e o melhor: grátis. 

Hoje compreendo que não há solidão para quem tem um cãozinho de estimação. Eles obrigam você a descer para a rua rumo ao sol (você não vai querer que eles façam cocô todos os dias dentro da sua casa, né?). E nas calçadas, praças, quadras, os donos de dogs se reconhecem, se identificam e começam a conversar papos caninos. Acabou chorare... 

Frida é a companhia silenciosa e diligente que não me perde de vista por todo o apartamento. Se estou sozinha na frente da TV, ela deita aos meus pés. Se vou para o quarto, ela fica na porta, caso precise desabafar ou trocar ideias sobre sapatos, bolsas: que brinco eu ponho? Se vou para cozinha, ela também deita por ali, aguardando um agrado em forma de pão. 

O cachorro não lhe abandona, sem dúvida. É o bicho certo para quem é carente. Não é o meu caso, peixe fugidio, amante da liberdade. Todavia respeito essa lealdade e fidelidade incondicionais. 

Aprendi a valorizar os silêncios profundos de Frida e a intensidade daquele olhar que exige contato. Sua presença é densa como as camadas de pelos que lhe cobrem. Insondável e altiva, ela é um enigma delicioso de contemplar. 

Realmente não poderia ter exigido a aquisição de uma raça tão a minha cara. Ela é quase uma Clarice Lispector de tão misteriosa. Detesto subserviência. Ela também. Sou esnobe, ela também. Queria ser a rainha da Inglaterra e ela a fiel escudeira da coroa, tenho certeza! 

Já me pego pensando na morte de Frida e sofro por antecipação. Impressionante brotar do teclado essa confissão!