Movimento das marés

Aí está ele, o mar, a menos ininteligível das existências não-humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos.
Clarice Lispector

Talvez seja mais parecida com a minha mãe do que eu pensava. Não que eu quisesse negar conscientemente a semelhança por implicância ou incompatibilidade de estilos. Era mais uma ignorância mesmo. Como se houvesse um perene eclipse do sol sobre a lua... É que eu tenho a sorte de ter duas mães.

Jandyra, minha madrinha, brilhava como o astro-rei, com sua força, onipresença e intensidade. A presença autoritária daquela senhora de personalidade única ofuscou o papel de mamãe durante todos estes anos. Mas agora, que o brilho de uma se apagou, posso reconhecer que sou uma mistura das duas. Ainda tenho tempo, antes que a companhia lunar da mulher que me colocou no mundo se vá definitivamente, para rever a influência dela sobre mim.

Mamãe: translúcida, fugidia e misteriosa...Um coração insondável que eu persegui por tantos anos, sempre tentando encontrar a brecha que permitisse o pleno aninhar na mulher de sorriso bonito e sentimentos amenos. Nisso não sou como ela, posso ter certeza. Explodo como o sol-dindinha. Gero quilowatts que não estão no gibi e queimo muitos do que estão ao meu redor.

Não sei medir a paixão pelos temas, mas paradoxalmente não vivo sem controle. Mando e desmando: critico. Jandyra está em mim em sua necessidade de não deixar nada passar em branco. Vigio, organizo, cobro. Um purgante, no mínimo. Porém, atenciosa, guardo o mundo. Quero a beleza e os amigos por perto. Celebro.

Mamãe não comemora, mas também não reclama. Não no sentido existencial, se me compreendem. Apenas da corrupção, das sacanagens triviais, das besteiras do cotidiano. Nunca vi mamãe em crise por ter sofrido reveses terríveis. E ela sofreu. Dona Maria nunca jogou na cara dos filhos seus dilemas e suas amarguras, se é que ela os teve. Porque, para mim, mamãe sempre pairou sobre ideologias e filosofias. Ela somente é ela: um bichinho selvagem. Não está nem aí para os padrões de “normalidade”.

Neste ponto eu me vejo tentando alcançá-la de novo. Constantemente renego autoridades, procurando a liberdade. Acho que este é o objetivo de mamãe: ser totalmente liberta de tudo e todos. Será que agora vai conseguir? Será que a morte é a liberação completa do ser para apenas ser?

Também tenho ganas de não dar satisfação para ninguém, de não cumprir o que esperam de mim, de não arrumar o meu armário. Mas o lado dindinha se impõe e eu não deixo nada incompleto. Mamãe, por outro lado, não liga para convenções e expectativas.

Colocava o pé na estrada e rumava como bem entendia: Amazonas, Los Angeles, Rio...Cigana, dizia não para a monotonia e a rotina. Sua verve mochileira corre no meu sangue. Viajar, ir ao encontro de cidades desconhecidas, ser uma turista nada acidental faz parte do que considero imprescindível e nos coloca lado a lado, compartilhando as mesmas aventuras. Mamãe rural, com cheiro de terra e leite de vaca, me ensinando a importância do mato dentro de nós, mesmo sendo do tipo urbanóide que não vive sem cinema, exposição e teatro. Maria tatuou em mim o valor de abrir o coração para o novo.

Uma mulher que não nasceu para ser dona de casa e criou os descendentes com a revolta silenciosa de não ter podido estudar e optar por uma vida menos óbvia, em época de pais tiranos e maridos idem. Entretanto eclética, não negava o preparo do mingau de maisena com chocolate e do frango cozido com pequi. Memórias gustativas de fazer arder o peito.

Desconfio que ela sempre vibrou com minhas iniciativas de mudança; meus amigos “meio estranhos” e o marido “The Big Bang Theory”. Sem palavras, eu vejo em seus olhos o orgulho faceiro de ter uma filha um tantinho rebelde que tenta escapar da mesmice do dia após dia - que nos encobre como um terremoto diário de chateações e horários marcados - por meio de textos, fotos e festas.

Minha progenitora e eu: tão longe, tão perto, tão diferentes em uma visão superficial, porém semelhantes na hipoderme. Na camada mais profunda que faz do relacionamento mãe-filha um jogo complexo e eterno. Lá da lua ela vai me sorrir com seus dentes largos, imensos (isso sim plenamente identificáveis com os meus). Assim como já me envia os seus raios solares minha outra mãe. Imprescindíveis motivações para olhar para o céu.

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