Vela de sete dias


“Era alto demais o preço para escamotear a velhice, neutralizar essa velhice - até quando? Por favor, quero apenas assumir a minha idade, posso? Simplesmente depor as armas, coisa linda de se dizer. E fazer. O tempo venceu”.

(Lygia Fagundes Telles no conto Boa noite, Maria)


Quero existir neste tempo onde os objetos são carinhosos, não funcionais. Funcionar não é preciso. Me desculpem os funcionais, mas a beleza de ser é fundamento. Deleitar-se é primordial. Krenak cravou a reflexão: viver não é útil; navegar, sempre.

Enfim, chega o momento dos anos no qual não sou mais eficiente, pujante. O filho namora no sofá da sala como já namorei. Maturando-me vou, sob o signo da serenidade.

A energia vital daquela paixão incorrompida não mais me pertence. A força utilitária da carne se transmuta na graça imaterial dos corpos libertos de obrigações de se fazerem apropriados.

Que alívio é desvencilhar-nos dessas conveniência e sofreguidão de permanecer alerta. De incorporar a juventude de energia ilimitada, pronta para se consumir completamente a cada hora.

A gente já pode ser vela de sete dias, iluminando a fogo brando, cumprindo as promessas sem impulsividade.

Observo a adolescência tardia em tantas pessoas. As redes sociais são pródigas em nos mostrar gente “curtindo a vida adoidado” numa síndrome de Dorian Gray que me exaure só de passar os olhos em tanta harmonização facial e tanto desequilíbrio anímico.

A pasteurização do hedonismo raso. Não tenho disposição para me manter jovem assim, buscando a maximização de sensações. Acalmar não é acomodar, porém, valorizar o espaço em branco, as reticências. A naturalidade do caminho.







Anteontem, num dos atuais raros momentos de conversa à mesa com o primogênito universitário, Tomás pergunta:

Mas você nunca escreveu para jornal ou revista, nunca quis ser repórter?

Ah, sim, claro que já escrevi. Inclusive já criei e editei alguns jornaizinhos, além de ter passado uns 15 anos escrevendo matéria para o site do STJ. Também fiz uns freelas para revistas e umas contribuições com o Correio Braziliense e com o Jornal de Brasília…

Fucei nos baús e encontrei uma pasta com algumas publicações. Tomás se espantou demais em saber que havia uma revistinha semanal com a programação de cinema da cidade.

Não tínhamos internet, né? Na Tablado, escrevia uma coluna chamada “Telas Alternativas”, com dicas de filmes “cult”. Também escrevia sobre videolocadoras, hahaha.

Cine Márcia? Cine Karim? Esses não existem mais. Onde é que ficavam?
O primeiro no Conjunto Nacional. O Karim aqui na Asa Sul, na 111/112 sul, perto do eixinho.
As pessoas pagavam por essa revistinha?
Não, elas eram distribuídas gratuitamente nas videolocadoras, nas academias de ginástica, nas lanchonetes…

Relembrei de quantos textos gratuitos foram produzidos naqueles tempos em que o jornalismo se confundia com “ah, você gosta de escrever, não quer fazer parte desse projeto tal e tal?”. Pagamento? Necas.

Ao menos hoje sou menos jornalista e mais pseudoescritora. KKK! Continuo não ganhando nada, mas a saúde mental deu um upgrade, né?

Comentários

  1. Adoreeeeeei
    O tílulo é espetacular!

    Karla Liparizzi

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  2. Querida Nunca lhe vi, sempre lhe amei, suas crônicas são deliciosas, nem sempre fáceis de deglutir, trazem necessariamente uma reflexão. Você não escreve impunemente e eu gosto.
    Como você ou até com mais propriedade porque o tempo me impõe, também "quero existir neste tempo onde os objetos são carinhosos, não funcionais". 🌸🪻🪷🌻

    Ângela Sollberger

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  3. Exatamente, Lu. Saúde mental.

    Re Osório

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  4. Uauuuuu maravilhoso Lu, não me canso 👏👏👏🙏🥰

    Cynthia Chayb

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  5. ☺️ a energia vital da paixão incorrompida....
    Pelo menos nós a experimentamos!! Há quem nunca, né??

    Bianca Duqueviz

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  6. Eu amo seus textos! Eu vivi tudo isso e sinto o que você sente! E você faz uma poesia com as letras, descreve profundamente o sentimento ❤️

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  7. Totalmente escritora 🤗🤗 ooh saudades da tablado, das videolocadoras, cinemas que não eram dentro de um shopping

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  8. Amo o belo também, mas a funcionalidade na terceira idade é fator primordial, vá se acostumando.
    Amo me olhar no espelho e ver as marcas da minha vida, de lembrar como passei pelos desafios, das alegrias, das saudades...
    Acordei hoje coloquei uma florzinha pra tia Paula e mandei luz pra ela .
    Bom final de semana pra vocês.😘

    Renata Assumpção

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