Ariel





Subverter o processo da escrita me deu branco. Estaquei na primeira frase brotada na tela do celular, depois de pronunciá-la ao microfone do aplicativo speechnotes.

A intenção das amigas foi das melhores: me dar a oportunidade de seguir escrevendo sem escrever. Mas revelou que tenho as tais idiossincrasias dos autores, ou seja, um método. Vejam só, justo aquela que se gaba de passar longe da sistemática. Assim, talvez amanhã eu termine o texto de mão única.

Sinto-me uma paródia de mim mesma; uma fake destra. Direitistas, não é o caso de pedir perdão, entretanto, ser esquerda me define.

Empunho o lápis ou a caneta sem nenhuma ergonomia e esse gesto tortuoso é o estopim para o derramamento de palavras ensanguentadas.

Não houve glamour. Não houve glamour (acionar o til no teclado, no momento, é um malabarismo. Seria mais fácil um idioma sem tantos sinais gráficos). Eis a sentença de abertura do travado discurso.

Estava num dos parques nacionais mais estupendos do mundo, porém a fratura não aconteceu nas trilhas difíceis ou nas pedras escorregadias e limosas das inigualáveis cachoeiras.

Poderia romantizar, mas o fato de mergulhar num duplo carpado, no asfalto da avenida central, diz muito sobre uma pessoa na obsessiva necessidade de fugir do trivial.

A busca pela originalidade me é tão cara que alcancei feito inédito: quebrar ambos os cotovelos no intervalo de uma década. "Fraturas raras, hein”, alfinetou o bem-humorado cirurgião.

Notas de tragicomédia na vida da pisciana de pés pequenos. Ariel eternamente desengonçada.

Tudo o que eu queria, face a face com o betume, era desaparecer. Patético repetir catástrofes.

Agora, garota provisoriamente interditada, estou a mercê de uma casa de homens que sentem gastura em colocar um par de brincos numa mulher. "Aprende, sua namorada vai agradecer".

"Passa o creme aqui no meu braço, mas não deixe os pelinhos na direção contrária, eriçados, tá bom?"

"Dá pra fazer um rabo de cavalo aqui? Não quero molhar o cabelo no banho".

Eles me olham com a estranheza natural de quem aporta noutro planeta, sutil e ritualístico.

Incompreendida e parafusada, entrego os pontos. Desisto de alcançar a autenticidade existencial, quiçá literária, nos próximos 50 anos.


Comentários

  1. Hahahaha maravilhoso, como sempre!!!!🙏🥰😂sempre um humor requintado….

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  2. Adorei ! Muito metódica rss... Queria ler um texto escrito pelos seus meninos sobre esses momentos 😁

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  3. Sensacional! Espero que melhore logo porque o que é cômico no texto é trágico na vida real!

    Bjos da sua fã n.1:

    Anna Gabis

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  4. Como sempre, você se supera à cada crônica!
    Quase morro de rir, com os seus relatos das dificuldades extremas dos homens em lidar com uma rotina simples feminina!!!
    Muito bom e explícito, real...
    Afff
    Não é fácil mesmo precisar deles para desabotoar uma roupa, colocar uma pulseira ou colar ou qqr outra tarefa que precisa de atenção com detalhes, delicadeza, cuidado...
    Como ensinar isso aos homens, essa "percepção fina", essa sensibilidade para o quase invisível?
    Missão impossível, parece...
    Mas relaxe, irmã, nesse momento você precisa somente se salvar...
    Bjs mil,
    Marilena

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  5. Adorei, Lu! É sempre um consolo saber tirar proveito de uma chatice, né? Boa recuperação, garota!

    Isa Frantz

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  6. Adorei. Não sei se dou risada ou se choro, uma reflexão, sei bem o que está passando ou melhor, imagino... Só homem aí, bem complexa a sua realidade. Força na peruca, minha tia sempre dizia quando passávamos por situações adversas.
    Bjcas,

    Renata Assumpção

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  7. Ficou muito bom!

    Rodrigo Chaves

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