Faro(lete)




Inspirada (e expirada) em Eva Furnari, escritora de tantas doidices maravilhosas.


Há 38 anos ele suporta a cangalha. Por isso não era de se estranhar que perdesse a noção de si mesmo, sem o peso do jugo daquele apetrecho que apenas cambiava de cor, de grau ou de forma, mas mantinha o domínio.  

Contudo, bastou um momento de deslize do parasita para, de repente, se perceber digno. Uma montanha escarpada, sólida, bem desenhada pela combinação de genes. A crista alongada, despida de relevos perceptíveis. Inexistentes depressões e fraturas. 

Alpinistas morreriam para escalar aquela face, um deles, inclusive, ousou afirmar que seria perfeito. Assim se sentiu ao se tatear desprovido do indefectível adereço opressor. 

Liberto, não somente durante o sono, mas ainda lúcido, permitiu-se a alegre solidão de ser longilíneo e delicado. Às vezes, úmido pelas gotas de orvalho que apareciam de uma hora para a outra. 

Estável e simétrico, sem dúvida. Seus túneis esculpidos com precisão, quase sempre desimpedidos, rumam para o interior sem pedágios. 

Concluiu, então, que ele era, de fato, um monte sagrado de ar respirável. Talvez um vulcão pacífico a dominar a paisagem do rosto que, ao contrário dele e para lhe dar mais fidalguia, era impreciso. 




Comentários

  1. O meu, infelizmente, não merece nem uma nota de rodapé!

    Davi Antunes Lima

    ResponderExcluir
  2. O meu sequer respirava há pouco mais de 6 meses. Não merece nem mesmo uma interjeição. ;)
    Pablo Freitas

    ResponderExcluir
  3. Tive de ler duas vezes para entender (sou meio lerdinha) e depois e ri.

    Ana Cláudia Loyola

    ResponderExcluir
  4. Lu querida, achei belíssimo teu texto. Não achei uma explicação exata, mas é tão lindamente escrito que só posso aplaudir.

    Ana Cecília.

    ResponderExcluir
  5. Prazeroso ler seu texto exuberante, Luciana. Os narizes são assim, de definição fugidia, ocultadores de mistérios e idiossincrasias. Também estive às voltas com um certo nariz, vindo de uma ancestralidade indígena, aterrissado no tempo, de faro francamente atrevido. Em nossas narrativas confrades os narizes estarão ponta a ponta um com o outro, para nos divertir.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos