Eletrodomesticados
Nesses dias piauienses em Brasília (sem nenhuma conotação pejorativa, apenas constatação, pois Teresina é o lugar mais quente que já visitei, tirando o Death Valley), resgatei um estranho e esquecido objeto do fundo do armário na cozinha: o espremedor automático de laranjas Arno.
Era noite, o calor sufocava apesar de estarmos vedados dentro do quarto com o ar-condicionado em 17 graus. Deu uma vontade louca de tomar um suco gelado. Uma mistura deliciosa de frutas com o Marieta Café e as tendas de vitaminas das ruas cariocas sabem oferecer.
Lembrei dele, coitado, tão abandonadinho! Subaproveitado, relegado ao ostracismo (qualquer semelhança com quem vos escreve é bastante identificável) da rotina corrida. Incrível é que ele ainda dá um caldo (também me identifico)!
Foi o primeiro eletrodoméstico que Bernardo e eu compramos em 1992. Ele e a máquina de lavar roupas Brastemp. Não me perguntem porquê. O que passa na cabeça de jovens apaixonados geralmente foge à compreensão. Enquanto cortava as laranjas me lembrava dessa história: minha cunhada me liga (telefone fixo, gente) avisando que o depósito da Novo Mundo em Sobradinho estava liquidando estoque de mostruário etc e tal.
Bernardo e eu, namorados sem nenhuma pretensão formal de casamento naquele momento, fomos lá e saímos com um espremedor de laranja marrom e bege e uma lavadora Mondial (primeira série dessa linha maravilhosa) debaixo do braço. Aliás, a máquina a gente colocou na carroceria do carro do meu irmão.
Era um pequeno passo para qualquer um, mas um gigantesco salto para nós dois. Então a gente ia de fato morar juntos? Declaração de compromisso para toda a família aquela compra bizarra. No ano seguinte, alugávamos nosso primeiro apê em Sampa. A lavadora e o espremedor coabitanto um quarto e sala no bairro da Aclimação, cujo prédio ostentava um imenso mosaico da Carmem Miranda. Frutas na cabeça, espremedor, sentiu a conexão telúrica?
Terminei o suco rindo disso tudo. Pensando que a dupla de eletrodomésticos poderia ser vista como uma metáfora do casal que nada parecia ter em comum para dar certo. Ele, o espremedor: sempre em busca do sumo das coisas, pesquisando, esmiuçando, esmigalhando tudo até os mínimos detalhes. Exigindo da vida uma essência límpida, líquida, caudalosa. Ele não admite nada menos que dois litros de informação sobre qualquer assunto.
Ela, a lavadora, balançando para lá e para cá, numa dança de pensamentos diáfanos. Deixando passar uma mancha aqui, uma sujeirinha ali. Perdendo um pé de meia de vez em quando. Torcendo as angústias, lavando a alma com um jorro de água. E refazendo todo o processo diariamente, insistentemente.
Ele, à sombra, discreto, austero, preciso. Ela, um trambolhão que ocupava quase toda a área de serviço e fazia muito barulho. Hoje em dia não é a mais aquela: pifou e se transmutou em outra Brastemp menos potente e sólida. Ele, depois de 25 anos, permanece o mesmo Arno: incansável na busca do cerne das questões.
É por isso que cartesianos estão no topo da cadeia evolutiva de Darwin, acreditem. Ao menos assim ratifica Quiroga, o astrólogo oráculo, nesse exato dia no qual escrevo esse subjetivo texto: "Piscianos, é preciso ser o mais realista possível, deixar de lado visões românticas de como tudo deveria ser para se orientar pela evidência de como as coisas são. Você verá que o realismo simplifica e orienta com eficiência".
Tá.
Tá.
Aqui rindo muito, Lu! Confesso que me senti uma certa identificação com seu espremedor de laranjas! Também tive um bom e velho arno. Infelizmente já não está mais entre nós (rs).
ResponderExcluirA resposta para o Quiroga, perfeita: Tá!
E sem mais! Delicia de texto! Bj!
Fran
Kkkk! Vai ser engraçado quando eu te encontrar e vier a minha mente a imagem de uma lavadora "dançando pra lá e pra cá..." Kkkk só você mesmo, Lu!
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ResponderExcluir"Eletrodomesticados" é daqueles textos que queria tê-lo criado eu mesmo... Que inveja de cada palavra, de cada pensamento. Simplesmente, demais! Depois de muito tempo, cair na rede é bom demais!
ResponderExcluirQue bom ir a um cotidiano de Machado, passear pela poesia de Manoel e conhecer a tua literatura alegre, sutil. Delicioso texto... Ele, o espremedor. Ela, a máquina de lavar... Muita vitamina C e alma lavada... Que doce leitura do simples! Obrigado, xará!
Um forte e saudoso abraço em vc, no Físico, nos garotos (que já estão rapazes)... Ser pisciano é assim... Que bom matar a saudade na sua nobre literatura cotidiana...
Luciano Villalba
Não consigo ser realista, tento, de fato com esse mundo tão caótico, queria ser menos pisciana no momento, queria meus pés no chão como de uma boa aquariana, queria a explosão de uma boa ariana ou até mesmo a autoconfiança de uma leonina, mas só consigo sonhar, sonhar que dias melhores virão... queria eu ser agora apenas um ventilador e soprar por aí cada vez mais amor!
ResponderExcluirAmei o texto Lu!
Juliana Cruz
Adorei demais! Tal qual Glória Pires, não posso opinar no quesito eletrodomésticos, o expert é Mario Andrade, pelas razões óbvias de milhares de dias de sucesso no Ponto Frio. Aguardo o veredito: que eletrodoméstico nos define, Mário?
ResponderExcluirMarisa Reis
Boas reflexões. Se brincar esse espremedor ainda é made in Brazil.
ResponderExcluirBernardo
Muito bom, Lu!
ResponderExcluirVocê sempre talentosa com as palavras e histórias!
Juliana Tavares
Identifiquei-me com a máquina. Sempre torcendo as angústias e me lavando com um jorro d'água.
ResponderExcluirAdriana Cappelloza
Ah, prima... Tinha qeu botar um Fábio Jr. pra tocar na hora, não? As metades da laranja...
ResponderExcluirValdeir Jr.
Rindo aqui, também... O espremedor e a máquina de lavar, totais identificações!!!
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