Feijoada no Céu







O sonho da madrugada reuniu dois mortos queridos. Talvez porque uma gostasse de cozinhar; o outro, de comer. Dindinha morreu no fim de 2009. Claudio Roberto, no início de 2017, para ser exata, no dia do meu aniversário: 21 de fevereiro. Recebi a notícia por mensagem do facebook de outro amado: Marco Antônio que, sem saber que estava para jantar relaxadamente sozinha com o marido na última noite em Miami, me repassou a notícia.

Ainda bem que já havia retido na janela da alma as cores intensas da capital da Flórida. Também já havia armazenado o calor da brisa morna das ruas mais latinas do que norte-americanas, pois, de repente, tudo ficou gelado e escuro. O prato de ravióli, largado pela metade (Claudio Roberto iria me repreender por tanta heresia). Quem mandou conferir as redes sociais enquanto o marido estava no banheiro?

Claudio Roberto, o segundo amigo de infância que perco na vida. O primeiro foi o vizinho e amor platônico Toninho, sobre quem escrevi à época. Claudio Roberto era amigo, sempre foi. E sempre foi duplo como o nome dele: gordo. E não pensem que estou depositando o peso do preconceito no adjetivo que por si só é pesado. Não me importava com esse fato, apenas constato. Ele era dos nossos. Entrou para o grupo que morava ali no cantinho final da Asa Sul: Marco Antônio, na 316; Larinha, na 714; eu, 715 e Claudio Roberto, na 115. 

Filho de militar, uma mãe que me parecia superprotetora e pouco preocupada em frear as gulodices do filhão, vivíamos uns nas casas dos outros, principalmente eu, criada solta, liberta, moleca. Nunca me esqueço da tarde de cachorros-quentes no apartamento do Claudio Roberto. Bandejas e mais bandejas... Assim como guardo no coração a gente assistindo ao "Purple Rain", embasbacados com aquele som e figura revolucionários do Prince na sala de Marco Antônio.

Era a descoberta da adolescência; das festinhas da vassoura ou do lenço; dos primeiros batons e beijos na boca. Era o fim do ginásio no Colégio Notre Dame, lugar que reuniu galera tão diversa em personalidade numa amizade de forte conexão emocional capaz de resistir ao tempo e à distância, amenizados por esse mesmo facebook milagroso.

Nunca mais vi Claudio Roberto. Há décadas não nos encontrávamos, apesar de morarmos na mesma cidade e, coincidentemente, termos escolhido a mesma profissão: Publicidade. Mas acompanhava de perto sua vida de professor da área na faculdade IESB (e o admirava por isso). Curtia de verdade, não apenas por netiqueta, suas postagens às vezes ácidas, outras, irônicas; às vezes melancólicas, outras, divertidas; às vezes, solitárias; outras, agradecidas, no ativo perfil que mantinha no FB. Quase me sentia amiga da esposa dele, de tanto que ele escrevia com amor sobre a Mônica.

E, do nada, ele morre assim, eu longe, sem nem poder dizer um tchau? Putz, foi triste. Mas o sonho, esse mecanismo delicioso de unir o impossível; de resgatar o inalcansável, coloca Dindinha e Claudio Roberto num mesmo encontro onírico.

Será que Claudio Roberto gostaria de comer a galinha ao molho pardo preparada por Dindinha que jamais tive coragem de provar? (todo aquele sangue que eu via se esvair do pescoço semi-degolado da pobre coitada não me parecia nada apetitoso). Será que ele pediria mais do cação ensopado da Dindinha que me apavorava? Odiava aquele peixe com gosto de peixe que era obrigada a comer na infância... 

Ou Claudio Roberto gostava apenas de guloseimas? Não, ele era um glutão com bom gosto, aposto! Tenho certeza de que não recusaria o feijão preto da preta velha. Esse, sim! Um feijão preto feijoada, suculento, denso, temperado com amor de madrinha. Ela gostaria de vê-lo devorar tudo com devoção nos almoços de sábado.

Então, Dindinha, põe mais um prato aí na mesa do céu, porque já convidei o amigo. Aproveita e chame a comadre Maria também. Ela vai gostar de rever o Claudio Roberto!


Comentários

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  2. Tinha notado alguns posts triste no Face dele e até comentei com a Lara em uma das nossas caminhadas. Passou-se uns dias ela me mandou o zap com a triste notícia da partida do nosso amigo de infância, para mim o sempre "Geléia" op´s agora não é mais acentuado né? Mas na época era kkkkk Que ele aceite o novo estágio da sua matéria e siga em paz!

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  3. Ai, Lu, que texto lindo! E eu aqui no início do expediente, toda emocionada, não posso isso não! Ninguém pode me ver com os olhos cheios d'água não.
    Muito lindo. Que delicadeza de palavras e de lembranças. Certeza que houve alguma conexão, além das meras conexões físicas, cerebrais, mentais.
    Bjs!

    Ana Claudia

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  4. Se o preço não fosse tão alto... Deu até vontade de ser convidado pra essa feijoada. Muita gente boa em volta da mesa.


    Valdeir Jr.

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  5. Li tudo com sofreguidão. Não entendo um talento desses escondido num blog cadê o livro?

    Márcia Godinho

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  6. Aqui perdido (umá redundância em se tratando de mim) em uma conexão maluca em Porto Alegre, voltando de mais uma caçada de mim, leio este post sobre a morte de Cláudio Roberto, o outro Claudio, meu companheiro de carteira escolar por muitos anos....meu oposto (o franzino e o gordo; ele radiante, eu o depressivo conflituoso...) e meu complemento, meu parceiro no desajuste e no humor ácido, escrachado e cruel. Unidos pelo nome e por muito mais. Moldados juntos com aquela turma maravilhosa em espírito e princípios. Tb não tinha contato com ele. Tinha-o no FB, que não uso...mas que importa...o tenho gravado na minha história, com uma infinidade de "post" e imagens indeléveis que me levam agora às lágrimas. Aqui, neste aeroporto lotado, em trânsito,ainda me procurando...Acho uma linda parte de mim....

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  7. Que sublime, que lindo, estou arrepiada, ele deve estar brilhando no andar de cima. Como é triste quando começamos a perder amigos de uma vida, isso ainda mexe muito comigo imagino com você. Fique com Deus e muita luz pra sua dindinha e pro Claudio.

    Bjcas,

    Renata Assumpção Queiroz

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  8. Ah! Que pena essa partida do Claudio Roberto. Sabia não... os óculos pretos são pra mim o mais marcante da figura dele. Sinto por ele, pela esposa, pelas outras pessoas próximas que o amavam.Obrigada Lulu por nos contar de um jeito tão bonito.

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  9. Adorei o texto e também chorei novamente ao ler. Apesar de estarmos distante ainda sinto muito emoção ao lembrar ou falar com alguém da nossa turma. Sentirei falta dos POST do FACE do nosso querido amigo. Você sempre foi maravilhosa com as palavras! Que bom que pensamos de forma parecida e que você entendeu porque te enviei a mensagem!
    Um beijo enorme para você!

    Marco Antônio

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  10. Puxa Luciana!!

    Isso, da gente perder amigos de infância, realmente mexe com o coração.
    Parece não fazer sentido...

    Um beijo.

    Paulo.

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  11. Vc me fez lembrar de tantas coisas... do tempo do Notre Dame. E é claro que o Claudio Roberto estava no meio com aquele óculos de armação preta.
    Além da lembrança de sua Dindinha e da minha tia Maria. Tem certas coisas que ficam gravadas mais do que na memória, acho que ficam gravadas na alma.
    ❤️
    Fabíola

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  12. Maravilha de texto, Lu! Quanto carinho! Bela homenagem para aqueles que já se foram, mas que estarão sempre no coração,né?

    Bjos,

    Fátima Venceslau

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