Negativos
Abril abre-se em paixões e traições da vida. Um mês que arde e resplandece de matéria humana. Vida e morte, Luciana. Tudojuntoemisturadoaomesmotempoagora.
Busca entre os guardados, qualquer achado descolado entre outros bordados e babados. Confere gavetas, fecha portas, folheia o antigo álbum de infância, rola o cursor de fotos. Caça sentimentos no afã de resgatar o que não é mais concreto. Restaram ectoplasmas de ternuras; de calor que sensor algum capta, a não ser aquele que dispõe o fundo do coração.
Descobre, combalida, que entre a pele maternal e a carência filial havia tantos outros nomes... Presenças intensas, cobradores, coletores, bocas a alimentar. A mão estendida da pessoa que implora pra não cair, porém que não se alcança a tempo. Entre ela e a mãe teria sido sempre essa distância diária difícil de encurtar?
A ausência de fotos “à duas” revelou a intermitência. Era mais prudente para aquela filha abraçar quem não fosse tão escorregadia e pudesse sumir de repente. Pois a mãe dela era liberdade em estado bruto. Diamante de lapidação incompreensível. As não-imagens escancararam atos falhos que nem os anos de terapia desvendaram: a filha não confiava no amor da mãe ao ponto de se entregar aos flagrantes de afeto para a posteridade.
Confortável era posar ao lado da madrinha, da tia, rodeada de irmãos e sobrinhos. A mãe e a filha caçula sempre em segundo plano no olhar, no toque, na intimidade. Ela, que compartilhou o mesmo quarto com quem lhe botou no mundo durante toda infância e adolescência, dormira ao lado de uma estranha que lhe sorria todos os dias.
O rastreamento nos baús resultara nesse clarão terapêutico chocante: mais de 30 anos de convivência e menos de dez fotos em dupla. A menina de dentro ainda ressabiada, mesmo na maturidade. Ferida pelos abandonos reais e imaginários: os monstros dentro do armário.
A mãe sempre sorrindo; a menina amuada nas vísceras. A simpatia leviana daquela mulher seria traço de personalidade ou mecanismo de defesa? A filha, mais uma vez, ficou sem resposta. A mãe apenas viveu a lançar seu brilho diamântico sobre a grande família de sangue e de afinidades. E a menina só se permitiu deitar no regaço – sem freios - da mãe, quando a luz dela já não lhe amedrontava.
No dia da partida, a filha se aninhou no calor do corpo que deveria ter sido seu abrigo essencial desde sempre. Entretanto, a frágil alma da matriarca alçou voo rumo ao desconhecido sem alarde. Não houve tentativa de capturar o espírito da mulher numa derradeira e redentora fotografia. Dos moribundos, não se anseia registros. A morte é fria e vazia. Atemporal e irrevelável.
Texto forte, verdadeiro e belo, assim como você é.
ResponderExcluirBjos!
Muito bonito esse texto! Gostei muito!
ResponderExcluirMárcia Holanda