Doces ou Travessuras?




Chamava-se Herculano. Por coincidência astral ou não, fora batizado com o mesmo segundo nome de meu pai. Não tenho memória de onde ou quando a vida dele esbarrou na da minha família, mais precisamente, na da minha mãe. Foi por ela que ele chegou até nós. Talvez uma paixão não concretizada por aqueles olhos verdes e sorriso imenso dela...

Deveria ter feito o registro desses pormenores quando Maria ainda tinha lucidez para contar passados. Agora, foi-se. Restou as lembranças de um homem esguio e muito alto. Herculano era uma espécie de Jesus Cristo das folhinhas de igreja ou mercearia, misturado com Indiana Jones. Era, portanto, um cara bonito. Talvez o modelo de homem viril que busquei em todos os namorados, quase sempre altos e magros.

Coroa que prendia seus cabelos dourados na altura dos ombros com uma faixa circundando a cabeça. Sabe o Crocodilo Dundee? Taí uma imagem precisa desta minha primeira figura paterna. A pela branca curtida de sol, uma faca embainhada na cintura, ou seja, um espécime totalmente não convencional para Brasília. Fascinante era o mínimo, ainda mais para uma guriazinha de quatro, cinco anos.

Vestia roupas caqui, com colete sempre aberto, chapéu panamá surrado. Tinha cheiro de mato, de terra batida. Surgia na nossa porta de supetão. Não era dado a formalidades, obviamente. Mas a casa da 715 sempre fora esse lugar aberto a todas as pessoas de todas as tribos. Lições democráticas de aceitação que mamãe dava sem saber que dava. Dias havia que, no almoço, uma galera filava boia por lá. Amigos de um filho, de outro, de outro... Pensão da dona Maria.

Herculano tinha voz grave e pensamentos fixos. Provavelmente fosse esquizofrênico, mas ninguém ligava muito para precisões lá em casa. Contava para mim diversas teorias conspiratórias. Sua boca prolixa tentava me catequizar. Inclusive, havia uma tal história da barata que ele disse que eu disse que até hoje eu não sei se disse, pois não me lembro de nada. Só sei que tenho pavor deste inseto asqueroso ainda hoje, só isso.

Mamãe dizia que a família havia desistido dele por causa dessas esquisitices. Mas que fora um funcionário público bem qualificado e que tinha vida remediada. Herculano morava em uma chácara lá para os lados do Varjão, quando a região era realmente puro cerrado intocado, e não piscinão do Paranoá e condomínios ilegais da classe média. 

Ali, longe das vistas dos censores, fazia suas experimentações: uma casa construída apenas com lâmpadas fluorescentes, daquelas compridonas: sala, quarto, teto... Que criança não ficaria encantada? Depois, cavou um buracão no barranco e ficou vivendo nele, buscando, quem sabe, o portal para Aldebarã?  

Herculano era um visionário atormentado. Um Raul Seixas que também acreditava em mensagens subliminares: "A letra A tem meu nome..." e outras charadas. Queria tanto recordar os papos de alfabeto que ele tinha comigo! Uns lances incoerentemente instigantes. Algo me dizia que ele não batia bem da bola, mas me dava a atenção de pai que qualquer órfã pediu a Deus.

Esse homem veio e se foi como por mágica. Não gostava de me ver com colares ou brincos. Dizia que isso tinha sido feito para aprisionar as mulheres. Eram, na verdade, algemas, grilhões. Chegou a arrancar um deles do meu pescoço num gesto brusco. 

Não sabemos se ele morreu de doença, atropelado, assassinado. Um dia, suas visitas cessaram, pronto. Aguardei esperançosa por muito tempo, mas nem pude me despedir. Parece que a minha sina é ter pais que partem sem dizer adeus. Porém, estranhamente, tenho um filho que tanto me faz lembrar esse homem... A energia vivaz de aventureiro e até a mania de colocar uma faixa circundando a testa. Rômulo gostaria muito de prosear com esse avô torto. 

E eu gostei muito de reviver todas essas doçuras.




Comentários

  1. É verdade, Lu, sua memória é fantástica! Veio à tona a imagem de Herculano, grande amigo de papai e que sempre ficou ao lado da mamãe numa época dificil, com seis filhos pequenos. Ele a ajudou a terminar de construir a casa do Lago que papai havia começado a lenvantar!
    Vc se lembra realmente da casa dele no buraco e a cobra de criação que andava sempre com ele? O Alessandro era o único que tinha coragem de pegar a tal cobra. E por incrível que pareça, o Romulito lembra ele no biotipo esguio e na maneira de querer as coisas....
    Saudade daquela figura única. Segundo ele, eu era uma princesa em vidas passadas. Só ele mesmo pra achar isso...

    Bjs.,

    Leila.

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    Respostas
    1. Tia Leiloca,

      não me lembrava mais da cobra não... Agora que você falou é que eu comecei a revê-la em flashes... Será que era uma jiboia?
      Obrigada por me recordar que ele era mestre de obras, né? Agora entendi como a mamãe o conheceu! Ele trabalhava com o arquiteto da casa, o tal de Gladson, é isso?

      Beijos,

      Lulupisces.

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