Lorotas de fim de ano



 Na  bat hora do almoço em família na mesa da cozinha, meu filho começou a cantarolar “como é que papai noel não se esquece de ninguém, seja rico ou seja pobre o velhinho sempre vem”. Foi como ser atingida por um tabefe de indignação, um raio de raiva: “mas que música mentirosa essa, não?” soltei revoltada. Pobre garoto que em seus quatro inocentes anos não entendeu nada. Espero que os traumas de ter uma mãe inconformada não sejam profundos...

Mas está chegando o Natal e com ele as mesmas histórias de solidariedade, fraternidade, respeito e união. A tragédia de Santa Catarina antecipou em algumas semanas o espírito natalino e magnânimos exemplos solidários se espalham pelo Brasil. Os telejornais não se cansam de mostrar como o brasileiro se une para ajudar a quem precisa. Quanta demonstração de humanidade... 

Antes que conjecturem que eu sou uma destas pessoas amargas que odeiam o 25 de dezembro, vão tirando o cavalinho da chuva: eu adoro o Natal! Uma celebração maravilhosa da qual tenho sempre boas recordações. As festas na minha casa raramente são chatas. Família grande, goianada barulhenta, muitas crianças. Também não tenho nada contra trabalho voluntário e espírito de entrega. O que me chama a atenção é esse conceito de solidariedade equivocado do brasileiro.

Eu queria ver solidariedade no dia-a-dia, entretanto, como diz a música, “de longe parece mais fácil, frágil é se aproximar”. Daí a gente vê toneladas de carinho, atenção e dignidade sendo enviadas para os catarinenses, mas não presenciamos um pingo de espírito comunitário no nosso prédio, no nosso trabalho, nas ruas em que trafegamos diariamente. 

Não venham me falar que o brasileiro é solidário quando deixa seus filhos sem cinto de segurança no banco de trás ou mesmo sentados no banco da frente. Cadê a solidariedade com milhares de crianças que morrem em acidentes de carro por falta do cinto? E a solidariedade daqueles que não assinam a carteira da própria empregada doméstica que exploram, pagam mal e fazem de tudo para que ela não se sinta parte da casa, mesmo morando nela a maior parte da semana?

Outro dia ouvi da minha superJucilene, sem a qual a vida da minha família não funcionaria, que uma patroa iria dispensar a amiga dela no mês de janeiro porque iria viajar. Na volta, estava pensando em recontratá-la, ou seja, a patroa não queria simplesmente pagar o mês de janeiro para a pessoa que cuida do filho dela há 1 ano. Aposto que essa mulher enviou roupas e cobertores para Santa Catarina e se sentiu mais humana por isso. Uma perguntinha básica: você conhece a casa da sua empregada? 

E aqueles brasileiros solidários que estacionam nas vagas reservadas aos deficientes físicos com seus carros chiques ou jogam lixo pela janela dos seus Audis e Tucsons no meio da avenida? Onde está a solidariedade de quem suja a cidade, de quem impede a livre circulação de cadeirantes ao parar seus veículos na base de rampas de acesso, bloqueando a passagem?

Sem falar na solidariedade dos que utilizam seus cargos públicos para prevaricar, se omitir, roubar e contratar parentes, amigos e aderentes sem competência alguma para a função, desmotivando e destruindo o ambiente de trabalho de milhares de servidores públicos que passaram em concursos difíceis, têm alta qualificação e não podem crescer na carreira  exatamente por causa destes brasileiros tão “sensíveis” às causas sociais.

Solidário este país que não investe na educação pública de qualidade. Da classe média que não quer uma escola pública na sua vizinhança porque atrai “marginais”. Assim vamos alcançar, em breve, os padrões de decência de uma nação de verdade. Que solidariedade pode existir numa sociedade que permite que crianças fiquem na rua pedindo nos semáforos como parte da paisagem?

De acordo com o dicionário Michaelis, solidariedade é o estado ou condição de duas ou mais pessoas que repartem entre si IGUALMENTE AS RESPONSABILIDADES de uma ação, empresa ou negócio. Ou ainda condição grupal resultante da COMUNHÃO DE ATITUDES E SENTIMENTOS de modo a constituir o grupo uma unidade sólida. Solidariedade também é coesão social, consistência interna, um COMPROMISSO pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras e cada uma delas por todas.

Ao ler estes significados só consigo enxergar o Brasil solidário no Carnaval, quando os brasileiros unidos em blocos de ruas assumem o compromisso de se divertir a valer. Queridos compatriotas que se acham legais por fazer doações de fim de ano, vamos por a mão na consciência e parar de usar a solidariedade em vão. O Natal está aí na porta e implora para seja levado a sério. Afinal, como diz outra  música sempre pertinente, “a lição sabemos de cor, só nos resta aprender”.

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