Pormenores




Tenho certeza de que vocês não vão acreditar. Porque eu mesminha também não acreditei e vocês sabem ou deveriam saber que eu sou daquelas que amam uma serendipidade e as tais conexões telúricas. Vivo encontrando ligações onde talvez não exista nenhuma. Será que forço a barra do acaso ou o destino é meu chapa?

Descobertas acidentais são metafísica em estado puro e como não aprendi com a minha madrinha a ser devota, apenas imagino vínculos mirabolantes brincando sozinha. Sob o olhar complacente de Jesus crucificado, Maria - mãe afetuosa – e da sagrada legião de santos, não me redimi de ser criança.

Sendo assim, eis que os anjinhos travessos aprontaram algo surreal comigo ontem, numa quarta qualquer. A tarde já estava pela metade e eu bem cansada após algumas horas com a afilhada de cinco anos (ser tivó é o que dá para ser após os 50cinquenta, olhe lá). Ainda rolou umas compras no Carrefour (odeio supermercado) e faltava mais de uma hora para a  sessão de terapia que não houve na semana passada. Por isso, estava em dúvida se desistia e voltava para casa ou se ficava perambulando pela Asa Norte. Resolvi ficar e entrar num brechó muquifo dos mais antigos da cidade, na 312, uma quadra que tem o seu quê de marginalizada. 

Usadão, a começar pelo nome, mantém o legítimo estilo mercado de pulgas, com coisas saindo pelo ladrão num caos de objetos e de roupas.  

Mas, voltemos um pouco na linha do tempo para que vocês entendam a casualidade afortunada que me acometeu. Meses atrás, perdi um brinquinho que eu adorava, comprado durante a experiência American way of life. O par se separou. Fiquei triste. Procurei por todas bolsas, gavetas, caixinhas. Realmente um deles tinha ido embora para a terra dos pés de meias, dos cachecóis, dos guarda-chuvas e das chaves. Guardei o outro solitário, em luto. Quem sabe dava para transformá-lo num pingente de gargantilha?

Pois bem. Enfurnada no tal brechó de quinquilharias mil, gastava meus minutos ouvindo a conversa da dona com uma cliente sobre filhos viciados em celular enquanto afastava cabides e checava estampas desconjuntadas, modelitos pavorosos de mangas entrelaçadas com belas camisas que não me serviam. 

Pensei com os meus botões: não preciso de nada. Só estou aqui para enrolar até o compromisso com a terapeuta. Já ia me embora quando passei os olhos pelo mostrador das bijuterias. Um emaranhado de colares dispostos sem nenhuma organização. Fiquei ali meio hipnotizada pela entropia daquelas pedras e fechos e por um brinco gigante num formato de onda ou de C (que acabei comprando. Tô meio a fim de brincões. Deve ser por causa do cabelão, mas isso cabe em outro texto), quando, absurdada reparei que o meu brinco abduzido pelo buraco negro se quedava ali, entre os achados e perdidos. 

O próprio: discretinho, encolhidinho, penduradinho. Aproximei os olhos porque achei que a miopia estava me pregando das suas e era de fato o desaparecido. Não há outro igual no quadradinho, ainda mais porque é ianque e estava sozinho. Quem compraria um único brinco?

Procurar uma coisa e reencontrar outra. O inesperado se materializando na minha frente. Não é algo muito doido? Devo ter entrado neste brechó sabe-se lá há quantos meses, experimentado blusa ou vestido, o brinco caiu da orelha, não percebi e a dona ou alguém o encontrou e o deixou à mercê de que fosse resgatado de sua solidão.

Uma aleatoriedade feliz, uma revelação. A tradução da alma em intricados pormenores.


Comentários

  1. Uauuu que incrível!!! inusitadissimo final, li com a maior curiosidade, li rápido e a surpresa maior foi o fechamento tinha que ser com vc Lu😂😂😂
    Cynthia

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  2. Eita! Que beleza, se não é sorte eu não sei como chamar!

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  3. Nossa! Da série tem coisas que só acontece contigo rsrsrsrs

    Anna Luiza Lima

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  4. Uau, os anjos conspirando a seu favor. Maravilha.

    Renata Queiroz

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  5. Adorei esta história!

    Karla Mello

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