Alquimia



"hoje eu não tô a fim
de corre-corre e confusão
eu quero passar a tarde
estourando plástico bolha"
(Karina Burh)


Um cristal na loja de elefantes. A alma de ponta à cabeça, sem janelas para ver as andorinhas ou a esquadra de araras amarelinhas como um raio de sol. Mulheres são bichos esdrúxulos. Proparoxítonas difíceis de rimar. Quando sangram, reclamam. Quando deixam de sangrar, também. Existências dinâmicas e instáveis. Voláteis, não volúveis, à procura do inatingível, do inefável.

Persistentes, atravessam a vida no transe de sonhos pueris, equilibrando pratos sujos e bolas de chumbo nas mãos, numa perene dança de Shiva.

Isso, somos todas deuses de múltiplos braços invisíveis. Em sincronia, empurramos o carrinho de compras (poderia ser o do bebê), seguramos a guia do cachorro entre as pernas e paramos para fotografar o ipê branco florido: sublime aparição.

Claro que existem mulheres capacitadas para os dias comuns. Para a impecável matemática da rotina. Contudo, generalizar é do humano, apesar de nossa patente diversidade.

Mamãe bem que tentou me corrigir. Vara de goiabeira, chinelada, engole o choro! Nada deu jeito na menina que gostava de ouvir música "de adulto" escondida embaixo da cama.

Ah, que dádiva as camas com pés altos de outrora. O vão versátil do quarto: esconderijos de monstros e de crianças melancólicas. Dessas para as quais a vida, desde sempre, só é possível emoldurada com florezinhas e corações nas margens dos cadernos; com lista de palavras mais bonitas; com coleção de poemas, de frases de livro e dos refrães do Belchior.

Certamente toda família deve ter um espécime torto desses. Sejamos francos: bestagem independe de gênero. Numa ninhada de seis, a probabilidade de - ao menos - um parvo sem serventia prática nascer e crescer fora do prumo, afeito aos arroubos da beleza, aumenta um bocado.

Se calhar de ser menina, vixe, tem futuro não, fora da alquimia. Folgo em saber que não estou sozinha nessa quebrada.


Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel, o que é paixão
(Belchior)



Minha filha, desce das nuvens

Hoje, sentada ao lado

Da hortinha da minha mãe

Pensei

Meu Deus, como a vida é besta.

Tanta conta pra pagar

E eu aqui sem um puto.

Minha filha, desce das nuvens,

Me diz meu terapeuta,

Uma queda dessas, se não mata

Pode lhe quebrar as pernas.

Mas hoje, eu aqui, ao som dos insetinhos

Penso

Meu Deus como a vida é besta

As nuvens refletidas na água da piscininha

E minha avó

Matando as borboletas chicoteando um pano de prato.

Criaturas horríveis, ela diz

Põe as larvas nas folhas

E estragam meu trabalho.

E eu que nem nunca tinha pensado nisso.

Se eu tivesse coragem vó

Eu saía das águas, das nuvens

E te ajudava

A matar borboletas

Mas é que elas são tão bonitas.

(Renata Dalmora)



Comentários

  1. Lembrando que a palavra Alquimia, vem de AlKen, nome do Clássico Egito, que um dia silenciava em meio aos mistérios divinos, que nos burlam a alma, tão impregnada de mistérios!

    Reginaldo França

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  2. Na minha casa tem... e vai ter Shiva Nataraja no meu corpo!! Uma vez, Lu, eu vi um mestre comparando símbolos do ocidente com os do oriente. Disse ele: Atlas carrega o mundo nas costas. Shiva dança sobre ele. E assim, com o único propósito de dançar mesmo...
    Que a beleza nos dê sentido a esta vida besta!!

    Bianca Duqueviz

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  3. Mulheres...
    As nossas vidas, como homens, são legais.
    Mas o que seria de nós sem vocês??
    Chato, muito chato.
    Beijo.

    Paulo Magno

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  4. Oi Lu , belos textos . Pra começar amo a música Karina Burh. Eu to aqui tentando surfar nas ondas do mar , da música, da mente ...

    Clarice Veras

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  5. Que coisa linda esse poema .
    E a sua alma sem janelas achei lindo também.
    Lembrei do conto A negrinha do Monteiro Lobato.
    Para mim todas as crianças são sensíveis. A gente é que estraga... Se a sua mãe tivesse lido o Rubem Alves talvez vc tivesse tido mais liberdade.

    Karla Liparizzi

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  6. Ficou legal essa analogia com Shiva.

    Rodrigo Holanda

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  7. Mais um texto brilhante!

    Karoline Simões

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  8. Luuu, migra esse blog pro Instagram. Muito difícil marcar suas pérolas lá do blog. Hoje eu queria era colar o texto todo... O mundo merece te ler!

    Juliana Neto

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  9. Lu, você ouvia música de adulto escondida? O que gostava? Os pés altos das camas eram incríveis mesmo.

    Ana Cecília Tavares

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  10. As mulheres modernas são multifacetadas.

    Marisa Brasiliense de Assunção

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  11. Belíssimo texto! Me encantou. Vou te seguir

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  12. bravo!

    Luís Felipe Machado Dib

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  13. Texto delicioso. Sorvi cada palavra, Lu. É isso. Dançamos ou andamos como Shiva.

    Maria Félix Fontele

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